Em Pittsburgh e cá no burgo
Em 1995, McArthur Wheeler assaltou dois bancos em Pittsburgh. Fê--lo à luz do dia sem usar qualquer máscara ou cuidar de se esconder das câmaras de vigilância. À noite, horas depois de as imagens dos assaltos terem sido transmitidas pelas televisões, Wheeler foi identificado e preso. Quando confrontado com o filme das câmaras de vigilância, atónito ao ver-se com tanta clareza no ecrã, Wheeler exclamou: "Mas eu usei sumo na cara!" Aparentemente, o bandido estava convencido de que esfregar sumo de limão na cara o tornaria invisível às câmaras. McArthur Wheeler não era competente para bandido. Era apenas estúpido.
O caso é citado no estudo "Incompetentes e sem noção de que o são" (Unskilled and unaware of it: How difficulties in recognizing one's own incompetence lead to inflated self-assessments, Kruger e Dunning, 1999). Nele, os autores demonstram que a dificuldade em reconhecer a própria inaptidão leva os incompetentes a uma avaliação inflacionada das suas capacidades, considerando-as muito acima da média da população (tendem a avaliar as suas competências no percentil 60 quando o seu desempenho não passa do percentil 10). Inversamente, e como consequência, rebaixam o valor dos outros. Tudo se deve, segundo os autores, à falta de capacidades metacognitivas, ou seja, nos néscios a competência para reconhecer a incompetência não está presente.
A estupidez é um assunto fascinante que não tem sido alvo do devido estudo e atenção. Grande quantidade de pensamento e recursos têm sido investidos na investigação e na medida da inteligência, mas pouca atenção foi dedicada à estupidez; o que me parece estúpido porque muito mais tempo, dor e dinheiro se têm gasto por causa dela.
Talvez o trabalho mais interessante sobre o assunto seja o do economista italiano Carlo Cipolla. The Basic Laws of Human Stupidity é um iluminado opúsculo, escrito nos anos 70 do século passado, que devia ser de leitura obrigatória para todos os não estúpidos - o que, de acordo com uma das leis postuladas por Cipolla, são muito menos do que aquilo que se possa pensar.
A definição do indivíduo estúpido feita por Cipolla assenta como uma luva em McArthur Wheeler e a tantos outros que conhecemos. Diz-nos o professor que um estúpido é aquele que causa perdas a outra pessoa ou grupo de pessoas sem que o próprio disso tire qualquer ganho, podendo mesmo incorrer em perdas.
Além do estúpido, Cipolla postula ainda a existência de mais três tipos, definindo-os de acordo com os ganhos que as suas ações lhes proporcionam e as perdas para os outros: o incapaz, cujas ações só resultam em ganhos para o outro; o inteligente, cujas ações proporcionam ganhos para si e para o outro; e o bandido, cujas ações tendem a causar perdas aos outros e ganhos pessoais ao próprio. Particularmente nocivo é um género de bandido que Cipolla designa como bandido com laivos de estupidez. São indivíduos que causam mais danos aos outros do que o ganho que obtêm: é o bandido que para roubar cem euros a alguém lhe rouba também a vida; ou o bandido que para ganhar alguns milhões de votos provoca uma perda de mais dois mil milhões de euros à sociedade; ou um bandido que para sacar um pecúlio de uns milhões de euros em comissões ilícitas provoca uma perda de confiança em instituições públicas que deviam estar acima de qualquer suspeita e ao serviço do bem comum.
Em 2015, cá no burgo, um ex-primeiro-ministro que está a ser investigado e é (apenas) suspeito de crimes falou durante longas horas na televisão em sua defesa. Em frente às câmaras declarou-se um cidadão perseguido não por suspeitas de enriquecimento ilícito mas por razões políticas. Se esfregou ou não a cara com sumo de limão antes da entrevista não sabemos, mas o homem, com desmedido pathos mas diminuto logos, procurou convencer os cidadãos de que é perfeitamente normal a um político viver muito acima das possibilidades à conta de avultados empréstimos recebidos em envelopes de dinheiro com regularidade quinzenal. Talvez, por um qualquer desígnio psicológico, o homem seja um sem-noção que se reputa mais esperto do que é e do que a média dos outros homens - o que o configuraria um incompetente de acordo com o estudo de Kruger e Dunning; ou talvez esteja convencido de que todos os estúpidos que há cá na terra são suficientes para lhe garantir um triunfal regresso à sua profissão: a política. Esta última hipótese, infelizmente, também é plausível. De acordo com as leis que Cipolla postula, há sempre muito mais estúpidos do que se consegue imaginar.
Ainda cá no burgo, um jornalista e uma redação anunciaram que um banco ia fechar as portas, iniciando um comportamento de pânico e corrida aos balcões para levantar dinheiro. Foi um ato estúpido porque provocou perdas no banco (já de si numa condição miserável), stress e ansiedade nos depositantes e perdas na reputação do sistema financeiro (também ele numa condição que valha-nos Deus); tudo sem ganho aparente para o jornalista e para a redação, que até perderam em reputação. Junte-se-lhe a estupidez dos políticos que esconderam e adiaram a resolução dos problemas do banco por razões eleitorais e para fingir, diante das câmaras, que estava tudo limpo - provocando perdas à sociedade sem que eles próprios, aparentemente, tenham ganho o que fosse - e o resultado é um festival de estupidez.
Vale a pena ler a tese de Carlo Cipolla e o estudo de Kruger e Dunning (ambos disponíveis online) antes que o novo ano comece e com ele nova e renovada estupidez. Lá, fazem-se valiosas considerações sobre a incapacidade dos incompetentes, sobre o perigo dos estúpidos e até sobre países em rota descendente. Países onde as ações danosas dos estúpidos têm um impacto maior na sociedade porque potenciam as ações dos bandidos. Sobretudo as dos bandidos com laivos de estupidez que, nestes casos, tendem a tomar o poder e a aparecer diante das câmaras a dizer isto e aquilo e o diabo, depois de esfregar a cara com sumo de limão.