Em Leiria aprende-se a mudar de vida depois de um enfarte
Teresa Serra desaperta cuidadosamente uns pesos que colocou nos tornozelos enquanto relata ao DN o que lhe aconteceu no final de setembro e que a fez mudar de vida. Está a terminar um exercício que faz lembrar os das aulas de aeróbica, mas aqui a ginástica é outra: aos 73 anos, recupera de um enfarte de miocárdio. Duas vezes por semana participa num programa de reabilitação cardíaca do Centro Hospitalar de Leiria, o serviço que acaba de ser acreditado pela European Association of Preventive Cardiology.
Até aquela manhã de setembro, Teresa nem sequer imaginava "que sofria do coração". "Vivo sozinha, estava a preparar-me para ir a mais uma ação do "Viver Ativo" (um programa de atividades para a população sénior desenvolvido pela Câmara de Leiria), quando senti um mal-estar, um aperto no peito", conta ao DN. Acabou por dirigir-se às urgências do hospital, e aí logo perceberam do que se tratava. "Pensando bem, já tive mais pessoas na família com problemas cardíacos. Eu é que não sabia que tinha", revela Teresa, que entretanto ficou em lista de espera até conseguir integrar o programa de reabilitação.
Quando entramos naquele ginásio (improvisado, uma vez que durante a pandemia as instalações da Unidade de Reabilitação Cardíaca do CHL tiveram de ser ocupadas por outras patologias inerentes à Covid-19), há bicicletas, uma passadeira, e outros utensílios para a prática de exercício físico. Ao mesmo tempo, nos monitores vão aparecendo os valores da frequência cardíaca, tensão arterial, e outros. Tudo monitorizado pelo cardiologista Alexandre Antunes, diretor desta unidade, cuja capacidade se fixa nos quatro doentes em simultâneo. "O que fazemos aqui é sobretudo um programa de reeducação, que passa por uma equipa multidisciplinar", conta ao DN. Não disfarça o orgulho de trabalhar há 12 anos num hospital que é agora o segundo do país com esta acreditação, e o o 10.º a nível europeu.
Criada em 2017, a Unidade de Reabilitação Cardíaca trabalha em articulação com o Serviço de Medicina Física e de Reabilitação. O programa de Reabilitação Cardíaca do CHL pretende melhorar a vida dos utentes com doença coronária, contribuindo para a correção de estilos de vida e para o controlo dos fatores de risco dos doentes. E o programa apresenta quatro componentes essenciais para o doente: a educação, com o acesso a informação essencial para a sua reabilitação; o exercício físico, com ginásio próprio e profissionais especializados; o relaxamento, com sessões para reduzir os níveis de ansiedade; e a disponibilidade de uma equipa multidisciplinar. "A frequência no programa e acompanhamento dos profissionais da Unidade permite aos doentes atingir as melhores condições físicas, psíquicas e sociais, para preservar ou melhorar a sua funcionalidade na sociedade", considera.
O programa inclui duas fases. A primeira acontece durante o internamento, após enfarte do miocárdio, que tem a duração de três a cinco dias, e a segunda tem 12 semanas, a decorrer (à partida) no primeiro mês após a alta. É aqui que entra este programa bissemanal de treino físico, associado a sessões educativas e de apoio psicológico, podendo ainda envolver, de acordo com as doenças associadas ou fatores de risco do utente, as consultas de Nutrição, Psiquiatria, Endocrinologia, Pneumologia, Urologia e Cessação Tabágica. De todas as especialidades, João Candeias, 60 anos, elege o apoio do enfermeiro António Mota como "o mais marcante", mesmo que não seja o mais importante. Porquê? "Porque me tem ajudado muito na parte psicológica", sublinha. Duas vezes por semana, este empresário ligado à exploração pecuária vem de Alcobaça participar no programa. Foi em outubro que o enfarte se anunciou, mas já antes se queixara ao médico de família de uma dor parecida. Saiu de lá com um analgésico e a indicação "de que era muscular". "Depois daquele episódio passei a dar mais valor às coisas, como antes não dava. E afinal tive que arranjar vagar para isto...coisa que antes nunca tinha". João sublinha que não é fácil, porque mora a 30 km de distância, trabalha por conta própria, mas sabe que esta reabilitação que lhe está a mudar a vida. "A verdade é que sinto-me muito bem com isto. O problema é que vai acabar".
O cardiologista sorri por detrás do monitor, enquanto manuseia a aplicação MOVIDA.Eros, desenvolvida pelo Instituto Politécnico de Leiria, que os doentes também instalam no seu telemóvel. "Entre o final do programa (fase dois) e um ano depois do seu início, os doentes mantêm os indicadores de qualidade de vida e atividade física, bem como a capacidade de esforço", explica o coordenador da Unidade do CHL. "Para tal contribui o facto de termos um programa híbrido, mantendo o contacto com a equipa de Reabilitação Cardíaca através não só de consulta aos três meses, seis meses e um ano, mas também através da aplicação interativa".
"Desde o início da Unidade já acompanhámos 135 doentes, dos quais 21 mulheres. A faixa etária predominante é a dos 50 aos 60 anos, dado que os síndromes coronários agudos são mais frequentes a partir dos 50 anos, e na impossibilidade de todos os doentes que sofrem de síndrome coronário agudo realizarem o programa de Reabilitação Cardíaca, privilegiamos os de faixas etárias mais jovens (40-50 anos), em que uma reabilitação pode ajudar a menor absentismo laboral e melhor funcionalidade no seio familiar ainda com dependentes a cargo; nos doentes mais idosos procuramos receber aqueles em que a ajuda otimizada e multidisciplinar da Reabilitação Cardíaca pode fazer a diferença para recuperarem a autonomia e evitar reinternamentos recorrentes por novos episódios", salienta Alexandre Antunes.
Para o diretor de Serviço de Cardiologia do CHL a distinção recebida dá confiança e conforto aos utentes - que são ajudados a ganhar qualidade de vida - e mostra que a unidade cumpre todas as normas internacionais.
O que significa para o Centro Hospital de Leiria esta acreditação europeia?
Esta acreditação significa que estamos a fazer bem o nosso trabalho. Que para a JCI, o hospital tem uma prática de acordo com as boas práticas e faz tudo de acordo com as recomendações. Não diz que somos melhores ou piores, mas antes que há recomendações [muito sérias e científicas] internacionais para a prática da reabilitação cardíaca e este serviço cumpre todas essas normas e fá-lo bem. Não é nenhum prémio, nem distinção. Mas dá confiança ao público a quem nós servimos. E estas coisas sabem-se. Quando vou a um sítio, se souber que tem uma acreditação qualquer, isso dá-me algum conforto. É evidente que também tem algum impacto internamente. É muito gratificante para uma equipa. Porque isto é um parente pobre quer na área da cardiologia quer da própria reabilitação.
Porque é que isso acontece?
Se reparar há muito poucas unidade de reabilitação cardíaca. Pouco mais de uma dúzia. Isto nos hospitais públicos. Depois há mais algumas no privado, mas a maior parte são de péssima qualidade. E isto é muito importante. E é o parente pobre porque não tem a ver com tecnologia, nem com novos fármacos, nem com investigação de complexidade. Tem a ver com coisas tão simples como educar, ensinar os doentes. E isso é um trabalho pouco visível, de pouca notabilidade.
Mas que pode ter tanta interferência na qualidade de vida dos doentes...
Sim, o impacto é muito grande. Há áreas em que o impacto é superior a alguns fármacos, a algumas intervenções. Uma das armas fundamentais é educação do doente - que é uma coisa que não consigo fazer na minha consulta. Não tenho uma equipa multidisciplinar para motivar o doente. O doente quando ali chega vai motivado porque lhe é explicado o que lhe aconteceu, o que foi feito e o que se espera dali para a frente. O doente hoje está internado três dias, depois do enfarte. Há 20 anos estava três semanas...
O que é que mudou?
Há 20 anos havia um massacre ao doente. Hoje o doente percebe que entra no hospital com uma dor violenta no peito e uma hora depois já não tem dor nenhuma, e no dia seguinte está sentado num cadeirão. A própria doença deixou de ter a carga emocional que tinha. Hoje é tudo muito mais simples. E o programa de reabilitação começa exatamente aí. Quando o doente percebe que tem que vir cá duas vezes por ano, durante 12 semanas fazer este programa, normalmente diz que sim. Mas se lhe perguntar quando sai do hospital, diz logo que não tem tempo para isto. É preciso dar-lhe tempo.
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