Em defesa do socialismo liberal

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Regular o capitalismo com base em critérios social-democratas e liberais é, para já, melhor do que substituí-lo por outro regime socioeconómico. Por isso, não sou hoje anticapitalista, embora seja, cada vez mais, radicalmente social-democrata e liberal.

1. O capitalismo foi, até agora, o que se arranjou de melhor para permitir compatibilizar liberdade e igualdade. Ao possibilitar a separação, como nenhum outro regime conhecido, entre poder económico e poder político viabiliza, embora não garanta, a constituição de regimes democráticos de Estado de direito. Ou seja, de regimes que permitem limitar o poder dos governantes e mudar pacificamente de governo com base na regra da maioria. Note-se que isso significa que a existência da democracia requer a existência de "forças do bloqueio", para utilizar uma expressão que ficou famosa no país em tempos não muito distantes, e portanto de ineficiências na governação. E requer, mais do que a possibilidade de escolher pelo voto quem nos governa, a possibilidade de decidir, pelo voto, mudar de governo. Um governo eleito que elimine a possibilidade de ser derrubado pelo voto não é democrático, mesmo tendo resultado do voto maioritário. E uma decisão maioritária de eliminar a possibilidade de alternância de governo não é uma decisão democrática, mesmo sendo maioritária. Ou, pelo menos, não é uma decisão democrática liberal.

2. Só é possível limitar o poder de governar, na sua intensidade e duração, quando os poderes sociais estão tão separados quanto possível, não quando estão concentrados. Por isso, a degradação do socialismo em ditadura não foi um acidente de percurso, no futuro evitável, mas a concretização do seu resultado mais provável. A fusão de todos os poderes gera despotismo. Infelizmente, esta é também uma tendência possível no capitalismo, seja porque este se desenvolveu desde o início sob forte controlo estatal, como na China, seja porque as dinâmicas de mercado, quando não publicamente controladas, geram uma concentração de poder económico capaz de pôr em causa a autonomia do poder político. Por isso, a democracia liberal requer o controlo e a limitação públicos da concentração do poder económico. Um Estado de direito democrático e liberal é ativamente antimonopolista e pró-concorrência, limitador das posições dominantes no mercado e do seu abuso, contra a concentração económica, adversário da concentração de poder económico seja qual for a sua origem e modalidade, mesmo quando resulta, no essencial, do mérito privado. Nada facilmente compatibilizável com, por exemplo, a apologia e promoção públicas, pelo Estado, dos "campeões nacionais" do mundo empresarial.

3. Se o capitalismo é mais compatível com a democracia do que outros regimes sociais é também, no lado negativo da balança, uma máquina poderosa de produção de desigualdades socioeconómicas. Para quem convive mal com a injustiça social da desigualdade e da sua reprodução classista, que para além de pouco humanista limita fortemente o âmbito do mérito, a regulação social-democrata do capitalismo é um imperativo moral e político. Regulação social-democrata do capitalismo não é apenas promoção de políticas de redistribuição dos seus resultados, embora não exista sem estas. É também a regulação do seu funcionamento no plano anterior da distribuição, recusando tratar as relações de trabalho como relações contratuais entre iguais. Um governo social-democrata tem a obrigação de se interpor entre empregadores e assalariados e criar mecanismos institucionais de reforço do poder coletivo dos segundos. Até porque menos desigualdade de rendimentos significa menos custos públicos da redistribuição e, portanto, menos vulnerabilidade financeira das políticas públicas. Com políticas social-democratas de distribuição e redistribuição, a limitação da desigualdade é facilitada pelo facto de os dinamismos do mercado, sob o capitalismo, permitirem ganhos de crescimento e, portanto, uma regulação da redistribuição desses ganhos em lugar de um jogo de soma nula, em que uns ganham o que os outros perdem, muito mais conflitual.

4. Por outras palavras, democracia e igualdade não são compatíveis com um Estado mínimo. O que reforça a necessidade de uma regulação liberal dos poderes públicos. Um Estado forte é sempre um Estado perigoso para a democracia e, a prazo, para a igualdade. Por isso, defender o reforço da intervenção do Estado tanto na regulação do mercado como na criação e distribuição de bens públicos requer a criação de mais contrapoderes e limitações à ação pública. A defesa da social--democracia, ou do socialismo democrático, como entre nós a opção ficou historicamente conhecida, requer uma radicalização da atitude liberal de desconfiança em relação aos poderes estatais e uma ação de promoção do seu controlo, divisão, descentralização e delegação. A social-democracia não só é compatível com o liberalismo político como requer o seu aprofundamento - para que seja possível um Estado suficientemente forte para contrariar a acumulação de poder económico e a desigualdade, mas controlado e limitado o mais possível para poder conviver bem com a liberdade.

*Sociólogo e Secretário Nacional do PS

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