Em casa, com Camões
De acordo com os meus projetos e planos, deveria estar a escrever esta crónica em Paris, onde a minha editora francesa me convidou a participar hoje, dia 10 de junho, no Marché de la Poésie de Saint Sulpice, fora de quaisquer temporadas cruzadas ou descruzadas, de qualquer dia de Camões ou das comunidades portuguesas, apenas num mercado de editores de poesia... A covid atenta e solícita, que veio entretanto ter comigo, para me oferecer generosamente uma infeção nos brônquios, impediu-me de sair do país em dia tão memorável, deixando-me a tossir em casa e a pensar em Camões.
Pensar em Camões não é mau tema para um 10 de junho, data em que o vemos cada vez menos presente, encoberto pela imagem forte de Portugal, a terra a que ele consagrou os seus versos, e pelas comunidades portuguesas que, na sua época eram feitas de comerciantes e exploradores ousados, individualistas nos seus projetos e aventuras, que não mereceram por isso maior atenção de um poeta que defendia prioritariamente no seu projeto político "os cavaleiros", a elite militar que criava as condições de segurança para o nosso império:
Os cavaleiros tende em muita estima
Pois com seu sangue intrépido e fervente
Estendem não somente a Lei de Cima,
Mas inda vosso Império preminente.
(Lusíadas, X, 151)
Os portugueses que surgem aqui e além nas páginas de Fernão Mendes Pinto, aventureiros individuais entrosados em terras estranhas, construtores sem plano fixo do seu próprio destino, são bem diferentes destes disciplinados cavaleiros e mais próximos talvez daqueles que hoje celebramos enquanto "comunidades portuguesas", esse grande testemunho coletivo que Portugal dia a dia inscreve, sem flores nem tubas, por todo o mundo.
CitaçãocitacaoO nosso maior poeta é também um grande poeta de língua castelhana: tal não o diminui, antes o exalta e magnifica. Como dizia Pessoa: Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. esquerda
Mas o poeta Camões está muito para além do seu projeto político, tal como Dante ou Milton. Não deixa, contudo, de ser interessante relembrar que a grande poesia não receia meter-se na política e, numa mão a pena e noutra a espada, juntar-se aos combates do seu tempo. A poesia de Camões é fundadora da poesia da nossa língua, não porque Sá de Miranda não tivesse já aberto o caminho, não porque o nosso poeta existisse sozinho na poesia do seu tempo, mas porque a poesia em português nunca mais pôde separar-se da música camoniana.
Ao ler recentemente Fernando Venâncio, dei-me conta da importância do castelhano na consolidação da nossa língua no século XVI e lembrei os poemas castelhanos de Camões e as influências claras de Boscán e Garcilaso na sua obra. Mas não, Camões não deixou por isso de ser fundador incontornável da poesia em língua portuguesa: apenas nos lembra que as línguas, as culturas e as poesias não evoluem sozinhas nos espaços nacionais, como se estivessem dentro de redomas, mas fazem-no sempre através do diálogo e da troca com outras línguas, culturas e poesias, e só assim vivem e crescem.
O nosso maior poeta é também um grande poeta de língua castelhana: tal não o diminui, antes o exalta e magnifica. Como dizia Pessoa: Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. E é em viver tudo de todas as maneiras que nos descobrimos como portugueses.
E assim se passou um Dia Nacional, com Camões, com poesia e com antibióticos...
Lisboa, 10 de junho de 2022
Diplomata e escritor