Em busca da fortuna perdida no Recife
Pouco se sabe sobre Manuel Vicente D'Anunciação. Sabe-se que era português, que emigrou para o Brasil, mais propriamente para uma cidade a mais de 200 quilómetros de Recife, em 1820, que aí fez enorme fortuna (incalculável, diz-se), como comerciante, e que morreu em 1899.
Não se sabe que idade tinha quando emigrou, porque decidiu abandonar Portugal, se cá deixou família e, imagine-se, onde pára a choruda fortuna que acumulou e que, ao que parece, tinha depositado num banco inglês do Recife, em 1878.
Já lá vão 107 anos desde a sua morte e o desaparecimento da herança milionária de Manuel Vicente D'Anunciação continua envolto em mistério e a encher as páginas dos jornais locais. Não se tivesse tornado este caso numa das maiores batalhas judiciais da história do Tribunal do Estado de Pernambuco, na região nordeste do Brasil, que tem Recife como capital.
Os cerca de 100 herdeiros brasileiros - está ainda por apurar a existência de herdeiros lusos - há muito que reclamam em tribunal a fortuna acumulada pelo comerciante com a plantação de cana de açúcar, a venda de madeira e o garimpo de ouro e pedras preciosas na cidade de Pesqueira, onde vivia.
Mas o The London Bank & South America, em cuja filial do Recife Manuel Vicente terá depositado o espólio, - que, entre outros bens, era composto por 150 barras de ouro, avaliadas hoje em 23,91 milhões de euros, 314 pedras preciosas, um diamante bruto e cordões de prata - alega que não encontra o documento que prova o depósito feito pelo milionário português.
Isto, apesar de, em 6 de Abril de 1923, o mesmo banco - actual Lloyds Bank - ter divulgado um edital no jornal Folha do Refice onde se lia: "ficam convocados os possíveis herdeiros a se habilitarem com documentos para os mesmos fazerem jus à herança deixada pelo casal [Manuel Vicente D'Anunciação e Margarida Jácome Bezerra] e que se encontra depositada neste banco sob a nossa responsabilidade".
Na altura, só apareceu um homem, Teófilo Nepomuceno, que foi considerado não herdeiro. Só mais tarde, os que dizem ter direito à herança iniciariam a batalha judicial.
No processo, os herdeiros de Manuel Vicente apresentam como prova, além do edital, declarações prestadas, em 1972, por uma antiga funcionária do banco, que afirmou ter visto a ficha do depósito, depoimento que viria mas tarde a ser confirmado por outro funcionário da instituição - "lembrei-me desta ficha pois chamava muito a atenção de qualquer pessoa que trabalhasse no sector por ser muito antiga e não haver lançamentos de depósitos ou de retiradas, só continha um contrato entre as partes com juros de 1,5 por cento ao ano, em 1878", terá dito a testemunha Josafá Alfredo Lira.
Da fortuna do comerciante, segundo o inventário, fazem parte ainda 500 mil acções da empresa norte-americana Hudson Valley Carbonic Company, duas fazendas na Pesqueira e 112 casas no Recife, onde o português desembarcou em 1820, sozinho.
Não se sabe ao certo qual o valor actual da fortuna, mas a avaliação feita à época do depósito - 200 mil libras esterlinas - não deverá ser tida em conta porque nos últimos anos a valorização do ouro foi muito superior à da moeda inglesa.
No início do mês de Agosto, o Tribunal de Pernambuco decidiu-se pela "absoluta inconsistência das alegações formuladas" pelos herdeiros quanto à existência do depósito. Uma decisão que deixou surpreendido o advogado dos herdeiros. "Há muitos interesses, muitas forças ocultas, envolvidos neste processo", reagiu à Lusa Eduardo Gomes.
Mas esta longa disputa não se fica por aqui. Eduardo Gomes já avisou que na próxima semana se inicia outro capítulo, com a apresentação do recurso no Supremo Tribunal de Justiça, em Brasília.
"Já tive muita esperança, que às vezes se transforma em decepção", desabafa Luís André Lira, 57 anos, um dos herdeiros do homem que era tido à data da sua morte como um dos mais ricos da antiga colónia portuguesa. *Com Lusa