"Em 2008, quando a Islândia sentiu que os aliados tradicionais a tinham traído, virou-se para a China"

Em Lisboa para o seminário Small States and Big Powers: Portugal and Iceland"s Foreign Relations, organizado pelo IPRI, a Universidade Nova de Lisboa, o Institute of International Affairs e o Instituto de Defesa Nacional, Baldur Thorhallson, professor da Universidade da Islândia, falou ao DN das vantagens e desvantagens da não adesão à UE. E também da crise financeira de 2008 e do equilíbrio ​​​​​​​nas relações com os EUA, a China e a Rússia.
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A Islândia esteve a negociar a adesão à União Europeia, depois suspendeu as negociações. Nas eleições que tiveram em setembro, a questão voltou a estar em cima da mesa. Será um assunto na agenda do próximo governo?
Não. A UE não vai estar na agenda do próximo governo porque os três partidos que vão compor a coligação são todos contra a adesão. Por isso penso que as negociações continuarão congeladas.

Isso acontece porque neste momento os custos de ser membro da UE são maiores para a Islândia do que os benefícios, uma vez que já pertence a Schengen e ao espaço económico europeu?
É assim que estes três partidos veem as coisas. Eu acho que existem várias razões que explicam o euroceticismo na Islândia - tanto da parte dos políticos como de boa parte da população. Muitos acham que os custos da adesão são maiores do que os benefícios e isso está muito ligado à indústria da pesca - que é o lóbi mais poderoso na Islândia. E é contra a adesão. O setor das pescas está fortemente ligado aos partidos políticos e tem funcionado como um poder de bloqueio nos últimos anos. Portanto mesmo os políticos que são a favor da adesão estão de mãos atadas por causa do poderoso lóbi das pescas. Os islandeses são fundamentalmente contra partilhar as suas águas territoriais com estrangeiros - isto vem do tempo da chamada guerra do bacalhau com o Reino Unido e que nos ficou na memória. Também o setor agropecuário é muito forte e é contra a adesão. As zonas costeiras e rurais, que representam os interesses destes dois setores, estão sobrerrepresentadas no nosso parlamento. É um sistema muito injusto. Mas os islandeses também são muito nacionalistas. Costumamos brincar que somos até mais nacionalistas do que os noruegueses [risos]. Isto tem que ver com o nosso processo de independência. Que foi pacífico. Foi travado com palavras e não com espadas. Mas baseia-se em três conceitos-chave - soberania, liberdade, independência. Portanto toda a nossa política externa é dominada por estes três conceitos. Foi o caso na adesão à NATO e também no processo para aderir à UE. Quando aderimos à EFTA [Associação Europeia de Comércio Livre] e ao Espaço Económico Europeu foi muito controverso. O governo na altura teve muitas dificuldades em conseguir o apoio para o fazer.

Esse nacionalismo, esse espírito islandês e ilhéu, é mais forte do que a ideia de pertença à Europa?
Sim. Na Islândia em primeiro lugar é-se islandês, em segundo nórdico e só em terceiro é que se é europeu.

Há a ideia de que a UE iria limitar a capacidade da Islândia de agir globalmente, é isso?
Sim. Os islandeses tendem a olhar para a UE como um mercado. Fazemos parte do mercado comum. Mas, no que toca à integração política na UE, continuamos céticos. Um dos motivos pode ter que ver com o facto de a Islândia não ter sido muito afetada negativamente pela Segunda Guerra Mundial. A Islândia enriqueceu durante o conflito por causa da ocupação britânica e americana. Porque durante a guerra nós vendíamos peixe ao Reino Unido e aos EUA e com a escassez de alimentos, acabámos por enriquecer. Por isso, na verdade não tivemos uma verdadeira experiência de guerra, como o resto do continente. A Islândia até hoje não sabe o que é uma guerra.

Neste momento em que ainda estamos a lidar com a covid, acha que fazer parte da UE teria sido benéfico para a Islândia durante a pandemia?
Fazermos parte do Espaço Económico Europeu ajudou muito a lutar contra a pandemia. Porque, como membros, também recebemos as vacinas negociadas pela UE. A UE forneceu vacinas a todos os membros do Espaço Económico Europeu e da Associação Europeia de Comércio Livre. A Islândia faz parte do Mecanismo de Crise europeu. Foi uma grande ajuda. Além disso a Islândia seguiu as regras de Schengen no que se refere a fechar ou abrir fronteiras. Mas no verão de 2020 abrimos as fronteiras a cidadãos dos EUA, antes de a UE o fazer.

A Islândia atravessou uma crise financeira em 2008, Portugal passou por algo parecido uns anos depois. Para muitos portugueses, foi nessa altura que perceberam que a UE não eram só benefícios, também trazia exigências e, neste caso, medidas duras de austeridade. Como é que foi na Islândia? Não tiveram a ajuda da UE mas também não tiveram de obedecer às suas regras para sair da crise.
Nem todos concordarão comigo, mas eu acho que a Islândia teve problemas com a sua moeda - estava inflacionada, houve um grande fluxo de dinheiro para a Islândia, taxas de juros muito elevadas - precisamente por ter a coroa. Houve três razões para a crise. Termos uma moeda vulnerável, o comportamento dos banqueiros e o governo não ter em conta um mercado e um orçamento de um pequeno Estado. O governo não tomou nenhuma medida para se proteger das consequências da livre circulação de capitais. Teríamos sido menos afetados pela crise financeira mundial se fôssemos membros da UE e tivéssemos de obedecer as regras europeias. Por isso. Custa-me dizer que termos a nossa própria moeda nos ajudou a sair da crise, uma vez que esse foi o motivo para a crise. E para mim não foi uma surpresa que nem os EUA nem a UE tenham dado apoio económico à Islândia durante a crise. Apesar de o governo norte-americano ter providenciado acordos de swap de divisas a todos os países nórdicos e à Suíça.

E porque não à Islândia?
Porque a Islândia já não era estrategicamente importante para eles. O setor financeiro norte-americano não se podia dar ao luxo de deixar o setor financeiro suíço colapsar, mas conseguia lidar com o colapso da economia islandesa. Do meu ponto de vista, os políticos islandeses não conseguiram garantir ao país proteção política e financeira suficiente durante a crise. E temos a mesma situação agora, nada mudou. A quem é que a Islândia liga se estiver em apuros financeiros? Isto é um problema. A nossa defesa está garantida pela pertença à NATO, pelo acordo de defesa bilateral com os EUA. Recebemos apoio diplomático frequente dos Estados nórdicos em organizações internacionais. A nossa proteção social vem também dos nórdicos, o problema surge quando os Estados nórdicos têm de escolher entre a Islândia e a UE ou os EUA. Vão sempre escolher a UE ou os EUA. Porque têm interesses maiores na UE ou na NATO do que num pequeno país como a Islândia. Repito: os políticos islandeses não conseguiram garantir uma proteção económica ao país em caso de necessidade. Não recebemos qualquer apoio externo para a recuperação pós-pandemia, por exemplo. Todos os membros da UE receberam assistência financeira.

É um custo de não serem membros da UE.
Sim. Claro.

A Islândia tem uma longa e forte relação com os EUA. Mas quando a vossa presidente assinou o acordo para entrar no Espaço Económico Europeu lembrou que o fazia para limitar a influência dos EUA no vosso país. Qual é essa influência hoje em dia versus a União Europeia, mas também a Rússia ou a China?
O nosso mercado mais importante é o europeu. Mas os EUA mostram hoje mais interesse do que a UE na Islândia. E há três razões para isso. Primeiro, porque as atividades russas no Ártico e em torno da Islândia aumentaram. Segundo, porque receiam as atividades chinesas no Ártico e não querem que a Islândia se aproxime da China. E terceiro, a Islândia está a fazer, e tem de continuar a fazer, um esforço para recuperar o interesse de Washington nela, para chamar a atenção. Os conservadores que estão no governo na Islândia são muita importância à relação com os EUA e esperam poder fazer um acordo de comércio livre com os EUA, conseguindo assim uma nova proteção económica para o país.

Estava a falar da Rússia e da China. A Islândia tem de conseguir um equilíbrio na relação com ambas, tendo em conta também as suas relações com os EUA e a UE?
A Islândia tem uma relação comercial sólida com a Rússia desde os anos 1950. E os islandeses ainda estão agradecidos pela ajuda russa durante a guerra do bacalhau com o Reino Unido. Quando os britânicos proibiram a entrada do peixe islandês, a então União Soviética comprou o stock inteiro e salvou os islandeses. Ainda está na memória das pessoas. Claro que a Islândia não está próxima da Rússia, faz parte do bloco ocidental. E tem sido afetada pelas sanções europeias à Rússia. Gostaríamos de nos afastar das sanções, mas mantemo-nos no bloco ocidental. Quanto à China, o que aconteceu em 2008, quando a Islândia sentiu que todos os seus aliados tradicionais a tinham traído, foi que se virou para Pequim. Depois de consultar o primeiro-ministro, o presidente da Islândia, na altura, escreveu uma carta ao presidente chinês a apelar ao diálogo sobre um eventual apoio chinês. O resultado foi um acordo de swap de divisa em 2010. Acabou por não ser economicamente assim tão benéfico, mas foi um sinal de confiança. Ninguém confiava na Islândia, ninguém queria nada connosco na altura. Por isso este acordo foi um sinal de confiança de um grande player internacional e foi muito importante na altura. Outro resultado foi a assinatura de um acordo de livre comércio com a China e de vários acordos de empresas - nas áreas da educação, da energia. Houve bastante cooperação entre a Islândia e a China entre 2008 e 2016-2017, quando os EUA, após a eleição de Donald Trump, disseram aos islandeses que tinham de escolher. Disseram "já chega", que a Islândia não podia juntar-se à iniciativa Uma Faixa, Uma Rota. Desde então que a Islândia tem recuado numa aproximação maior à China. Veja o que acontece quando um aliado poderoso deixa cair um aliado mais pequeno num momento de necessidade - este não tem outra opção a não ser virar-se para os rivais dos seus aliados tradicionais. A Islândia chegou a pensar num resgate russo em 2008. Não se sabe bem até que ponto avançaram as negociações. Mas sabemos que o governo islandês pensou jogar a carta russa. E isso já vinha dos tempos da Guerra Fria, em que a Islândia ameaçava virar-se para os soviéticos para fazer comércio se os aliados ocidentais não respondessem aos seus pedidos.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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