Em 1854, a pré-história tomou de assalto a cidade de Londres

Molho de bacalhau e ostra, filetes de badejo, torta de pombo, frango cozido apaladado com molho de aipo e, para adoçar, uma bavaroise incluíram-se no generoso elenco de pratos servido na noite de 31 de dezembro de 1853 à vintena de comensais, homens da ciência, sentados à mesa nos jardins de Sydenham Hill, a sul de Londres. O repasto, em oito momentos, regado com xerez e vinho do Porto, provido em finas porcelanas e pratas e à luz das velas, mereceria a 7 de janeiro de 1854 notícia no jornal Illustrated London News. Semanas antes, um panteão de ilustres, onde pontuavam o paleontólogo Richard Owen, o naturalista Edward Forbes, o ornitólogo John Gould e o geólogo Joseph Prestwich, recebera um convite singular. Em jeito de convocação, o desenho de um pterodáctilo, criatura aérea da Pré-História, solicitava "companhia para jantar num iguanodonte". Um convite com o seu quê de inusitado. O dinossáurio, de nove metros de comprimento, perto de cinco toneladas de peso, habitara, há perto de 126 milhões de anos, uma larga região, correspondente à Europa Ocidental e Américas..Perto de 30 anos antes do jantar londrino de fim de ano, coubera ao ginecologista e também geólogo inglês Gideon Mantell, com base em amostras de fósseis, completar a tríade de criaturas pré-históricas então identificadas: o megalossauro, o hilaeossauro e o iguanodonte. Em 1853, os participantes no banquete pré-histórico aquietaram os seus apetites no interior de um iguanodonte. "Trocado por miúdos", os comensais sentaram-se a "bordo" da enorme peça que servira de molde à reconstituição de um iguanodonte, uma de entre as 15 estruturas de ferro, cimento e tijolo a mimetizarem a fauna pré-histórica que em breve ilustraria a segunda vida do Palácio de Cristal, edifício maior da Grande Exposição de 1851. O jantar servia de prelúdio à inauguração prevista para o verão do ano seguinte..À mesa da jornada pré-histórica sentava-se um escultor inglês, também naturalista e geólogo, a quem coubera uma inusitada empreitada: convocar a Londres vitoriana da segunda metade do século XIX para uma viagem pretérita, a de um parque temático que reconstituiria a fauna terrível do passado. O escultor respondia pelo nome de Benjamin Waterhouse Hawkins, nascido em Londres em 1807, homem que mergulhara os seus interesses numa disciplina debutante no século XIX, a Paleontologia. O termo fora cunhado em 1822 pelo francês Henri Marie Ducrotay de Blanville, editor do Journal de Phisique, em referência ao estudo de organismos vivos através de fósseis. Ainda jovem, Waterhouse Hawkins aprendera escultura com mestres ingleses como William Behnes, contribuíra com ilustrações para The Zoology of the Voyage of HMS Beagle, obra em cinco partes supervisionada por Charles Darwin. Na década de 1840 Benjamin Waterhouse exibira esculturas de animais à escala de 1:1 na Royal Academy of Arts. No mesmo período, o império britânico preparava a Grande Exposição dos Trabalhos da Indústria de Todas as Nações, como ficou conhecida a mostra de 1851. Exposição que teve a sua pièce de résistance no Palácio de Cristal, construção em ferro fundido e vidro erguida em Hyde Park, na capital inglesa, para acolher mais de 14 mil expositores. Waterhouse Hawkins desempenhou papel de relevo na exposição, como seu superintendente. Após o encerramento da Grande Exposição, o Palácio de Cristal foi desmantelado e reconstruído em Sydenham Hill, nos arredores de Londres. A área, transformada num parque público, com jardins ornamentais, estatuária e lagos artificiais, carecia de um motivo de atração. Este chegaria a 10 de julho de 1854, quando o trabalho escultórico de três anos de Waterhouse, com a consultoria do já citado Richard Owen, se materializou numa reconstituição em grande escala de dinossáurios. Os olhos e o pasmo de dezenas de milhares de visitantes detinham-se perante aquele que era o entendimento da época das bestas pré-históricas. Há muito que o passado entregava em mãos humanas ossadas colossais, por séculos entendidas como a prova de um mundo povoado de dragões, ciclopes e castas de entes gigantes. O século XVIII, com George Cuvier, e a centúria seguinte, com a anatomia comparativa de William Buckland, reequacionaram o papel das criaturas pré-históricas. Agora, Benjamin Waterhouse Hawkins entregava forma, cor e criatividade a uma fauna constituída pela já referida tríade de dinossáurios, a que se juntava a preguiça-gigante (megatherium), o alce-irlandês (megaloceros), o ictiossauro e o mosassauro..Um catálogo de vida passada que carecia de correspondência com a realidade. De acordo com a paleontóloga Susie Maidment, num artigo publicado no site do Museu de História Natural de Londres, "o que realmente fizeram [Waterhouse e Owen] foi pegar em animais que conheciam na época, como crocodilos e lagartos, e agigantá-los nas suas formas, para ficarem do tamanho dos ossos encontrados [...] Um animal gracioso, de duas pernas, estava completamente além da compreensão do que um réptil poderia ser". Todas as réplicas dos dinossáurios de Waterhouse assentavam o seu peso em quatro membros, o que não invalida serem modelos notáveis por retratarem as imprecisões científicas da paleontologia inicial..O "pai" da fauna pré-histórica de Sydenham Hill viajou em 1868 para os Estados Unidos, onde palestrou, a par com o paleontólogo Joseph Leidy. Na década em que permaneceu em solo norte-americano, Waterhouse reuniu feitos, entre eles o de ter reconstruído o primeiro esqueleto completo de um dinossáurio, o Hadrosaurus foulkii, cujas ossadas haviam sido escavadas em 1858 pelo advogado William Parker Foulke. O modelo exibido na Academia de Ciências Naturais de Filadélfia estabeleceu o conceito padrão para as futuras exibições de esqueletos de grandes sáurios. Ainda em terras do Tio Sam, o escultor britânico construiu modelos para o Museu de Central Park, em Nova Iorque, montou um estúdio em Manhattan e planeou criar um Museu Paleozoico, intento gorado. Em 1871, um incêndio com mão criminosa destruiu todo o trabalho do escultor britânico..Benjamin Waterhouse Hawkins morreu em 1894 na sua Londres natal. Os dinossáurios de Sydenham Hill cairiam num crescente desinteresse. Em 1936, o Palácio de Cristal assistiu ao seu derradeiro ato, ao arder por completo. Salvaram-se as criaturas de Hawkins, embora maltratadas. Em 2002 foram alvo de restauro e em 2007 reconhecidas na lista do património protegido inglês. Atualmente continuam a poder ser visitados no parque que é a sua morada há perto de 170 anos..dnot@dn.pt

Em 1854, a pré-história tomou de assalto a cidade de Londres

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