Elza vem do fim do mundo e diz: "Não posso parar de cantar"

Aos 79 anos, Elza Soares apresenta o seu último disco, "A Mulher do Fim do Mundo", hoje em Aveiro e amanhã em Lisboa
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Eis o que sabemos: Elza Soares vem do fim do mundo. É A Mulher do Fim do Mundo, como diz o seu último álbum, primeiro de inéditos, que neste mês recebeu o Grammy Latino para melhor álbum de música popular brasileira. E o fim do mundo, diz ao DN, situa-se aqui: "É o fim do mundo das coisas ruins, vêm as coisas boas." A cantora, que atua hoje no Teatro Aveirense, no Sons em Trânsito, e amanhã no Coliseu dos Recreios, Lisboa, no Vodafone Mexefest, fala num hotel em São Paulo, longe do Rio de Janeiro onde nasceu no bairro pobre de Padre Miguel há 79 anos.

Apetece traçar o seu perfil citando versos daquele álbum de um samba simultaneamente negro e de carnaval, editado no ano passado no Brasil e em 2016 no resto do mundo. Ela mesma o faz, depois de responder que se sobrevive à morte de um filho, como lhe aconteceu com três dos seus sete filhos, "vivendo, cantando". Perguntamos-lhe se é por isso que o choro pode ser carnaval, como ela canta na canção homónima do disco, e Elza responde declamando: Meu choro não é nada além de carnaval, é lágrima de samba na ponta dos pés.

Se alguma vez perguntou "Porquê eu"? "Não adianta, porque todo o mundo passa por alguma coisa, eu não sou a única. À minha volta já aconteceu várias vezes, várias vezes", diz em mais uma das suas respostas parcas, secas embora afáveis. Talvez seja por isso que tantos se reveem naquela voz grave e quente, por vezes rouca.

Comecemos pelas mulheres que sofrem violência doméstica. Faz sua a voz delas em Maria da Vila Matilde, ao cantar: Cê vai se arrepender de levantar sua mão para mim. "É uma denúncia, não é? Porque a mulher está cansada de sofrer calada, ela tem que denunciar. É uma canção que diz a todo o mundo para fazer o que tem de ser feito. Eu acho que existe muito no mundo. Acho que basta ser mulher para saber. Porque a mulher está sempre se sentido subjugada. A mulher é sempre a segunda, nunca é a primeira. Onde tem um homem e uma mulher pode esperar que aconteça alguma coisa."

Voltemos ao início. À infância pobre de Elza, filha de um operário que "tocava violão" e de uma mãe "lavadeira que cantava bem". Ela cantava com o pai, o quê não se lembra: "Era muito pequenininha." Depois veio a rádio, onde aos onze anos escutava Orlando Silva e Dalva de Oliveira. "Ouvia na rádio e cantava as canções dela, só para mim. Eu não canto em casa, nunca. Não sei te explicar, também não sei. Não sinto vontade", lança.

Conta que casou aos 15 anos "era uma menina e fui logo mãe - uma loucura, né? Imagina... -, ele [o marido] era pouca coisa mais velho". A narrativa que mais vezes se escuta, porém, diz que ela tinha 12 anos quando casou e que o seu marido era dez anos mais velho. Elza perdeu um filho por falta de nutrição e acabaria por ficar viúva.

O seu segundo e bem mais mediático casamento foi com a estrela do futebol brasileiro Mané Garrincha, entre 1968 e 1982. Mediático pelo alcoolismo dele, pelos maus-tratos de que terá sido vítima, e pela perseguição que sofreu por se juntar a um homem casado e pai de filhos. Ele morreria um ano depois da separação, em 1983.

"Acaba de nascer uma estrela"

Elza diz ao DN que tinha vinte anos quando cantou em público pela primeira vez. Essa atuação no programa de jovens talentos de Ary Barroso, Calouros em Desfile, na Rádio Tupi, ficou célebre. Recordou-a a Caetano Veloso, numa entrevista que o músico conduziu para o jornal O Globo: "Peguei uma saia e uma camisa emprestadas da minha mãe, e muitos alfinetes. Eu pesava 35 quilos; ela, 60. Onde sobrou pano, coloquei alfinete. Só não sabia que ia ficar feito uma bruxinha, esquisita para chuchu. O Ary olhou pra mim e perguntou: "O que é isso, meu Deus, de que planeta você veio?". Eu respondi: "Do planeta fome". Falei com as lágrimas descendo já. Na metade da música [Lama], ele estava abraçado comigo. No final, disse: "Senhoras e senhores, acaba de nascer uma estrela"."

Assim foi: uma carreira cheia de altos e baixos, onde depois do sucesso nas décadas de 60 e 70 - o primeiro álbum Se acaso você chegasse saiu em 1960 - foi o próprio Caetano quem a obrigou a não desistir da música algures nos anos 80. Ela tinha um filho doente, a música não estava a resultar. "E foi Caetano que disse: "Não, não, não vai parar não." E me convidou para cantar Língua", recorda.

79 anos: muitas cicatrizes e dores nas costas que a obrigam hoje a cantar sentada e deixar de lado os seus característicos sapatos altíssimos. Voz das mulheres, dos negros (na terça-feira , foi a homenageada no Troféu Raça Negra, no Brasil), dos homossexuais, dos transexuais, como em Benedita, onde conta a história de uma viciada em crack. "Não falo de política", responde, quando lhe perguntamos acerca da atual situação do Brasil, e da eleição de Marcelo Crivella, bispo evangélico, para prefeito do Rio.

Quantas vezes renasceu? "Várias vezes, várias vezes, várias vezes. É preciso ter muita fé, muito amor. A vida tem sido para mim um jogo de xadrez, e sempre tenho uma dama do meu lado. A dama é a música." Em Comigo, última canção do disco, diz: E o que me fez morrer / Vai-me fazer voltar. Referia-se às alturas em que "a vida te dá um tombo, a vida te dá um desgosto". Voltou sempre. E com esta certeza: "Eu não posso parar de cantar. Cantar é o meu remédio, a minha medicina."

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