Elogio dos atores e dos pinguins

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Em 1980, quando descobrimos Robin Williams em Popeye, de Robert Altman, lembro-me da pergunta premente: que é "isto"? Em sentido literal: como definir tal interpretação? Num misto de agilidade da pose e precisão do gesto - em linha direta da experiência da stand-up comedy -, Williams emergia como um herdeiro do classicismo de Hollywood, pressentindo o corpo do ator como "coisa" moldável segundo modelos de outras formas de figuração, nomeadamente a BD e o desenho animado. Compreendemos, agora, que tal exuberância antecipava, ainda que de modo ambíguo, a possibilidade de a presença do ator ser contaminada pelas mais diversas formas de manipulação (os célebres "efeitos especiais") num novo quadro de representação - quadro virtual, entenda-se, em que o ator, melhor ou pior, está condenado a imaginar o cenário que irá sobrepor--se ao fundo verde do estúdio.

A carreira de Williams evoluiu assombrada por essa tendência que tem vindo a minar o grande património narrativo de Hollywood. Veja-se o monumental disparate que é Jumanji (1995), filme em que o ecrã já só é entendido como duplo de um banal jogo de vídeo; por alguma razão, Joe Johnston, o realizador, veio a assinar produtos de espetacular indigência narrativa como Capitão América: o Primeiro Vingador (2011).

Nesta perspetiva, e para além do combate com os seus demónios interiores, Williams viveu também uma odisseia de sobrevivência no interior de um sistema de produção que, em muitos aspetos, tem vindo a prescindir de um dos seus trunfos mais genuínos. A saber: a capacidade de transfiguração dos atores. Lembramo-lo, por isso, em personagens que envolvem os mais delicados enigmas humanos. São personagens que nascem da exaltação do poder libertador das palavras, como em O Clube dos Poetas dos Mortos (Peter Weir, 1987) ou O Bom Rebelde (Gus Van Sant, 1997), ou até da capacidade encantatória da própria voz humana, como aconteceu em Alladin (1992), desenho animado em que compunha o Génio da Lâmpada. Por vezes, são personagens de perturbante ambivalência moral que circulam por filmes notáveis - como a invulgar tragédia familiar Câmara Indiscreta (Mark Romanek, 2002) -, pouco ou nada protegidos por um marketing vocacionado para as rotinas dos blockbusters. Enfim, são provas esclarecedoras da versatilidade de alguém que, na animação Happy Feet (2006), conseguiu mesmo cantar o My Way, de Frank Sinatra, com sotaque espanhol. Difícil? Talvez, sobretudo tendo em conta que a personagem de Williams era um... pinguim.

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