"Quando tudo o mais nos é retirado, a bicicleta dá-nos liberdade", diz Hugo Jacinto, supervisor da Bike Zone, loja há dez anos instalada na Estrada de Benfica, 400, a dois passos do sempre apetecido circuito desportivo do Monsanto. E di-lo porque, trabalhando para uma empresa com 25 anos de atividade com sede em Braga, sabe que a primavera do nosso confinamento assinalou um recorde histórico de vendas de bicicletas para uso urbano, acentuando muito uma tendência que, de forma tímida, já vinha a registar-se.."Até aí vendíamos essencialmente bicicletas de estrada ou desportivas. Acredito que, neste contexto, para muita gente apostar nesta aquisição passou essencialmente por uma questão de segurança: abdicar do transporte público, potencial foco de contágio, sem recorrer ao automóvel, mais dispendioso e, em alguns pontos da cidade muito congestionados, mais lento. Por outro lado, ao mesmo tempo que os ginásios encerravam, muitos terão sentido que ir para o trabalho de bicicleta funcionaria como alternativa, proporcionando exercício físico com vento na cara, o que é uma sensação muito boa, sobretudo se temos os nossos movimentos limitados.".Os efeitos colaterais da pandemia diversificaram ainda o tipo de clientela da Bike Zone, que, para além de vender bicicletas e todo o tipo de acessórios, presta assistência técnica multimarcas. "A grande procura de bicicletas elétricas trouxe-nos clientes mais velhos", diz Hugo Jacinto. "De repente, passámos a ser procurados por pessoas com mais de 60 anos, a quem este produto trouxe uma liberdade que não tinham com as tradicionais." Uma tendência que, acredita, veio para ficar dada a quantidade de encomendas em lista de espera que tem neste momento..Sara Duarte, funcionária da Bike Shop desde o princípio do mês, é uma dessas pessoas a quem o confinamento devolveu o gosto pelo ciclismo perdido na adolescência. "Com a casa em obras, vim para Benfica para casa dos meus pais e recomecei a andar na minha bicicleta de miúda. Claro que estava já muito obsoleta e comprei um modelo mais moderno em segunda mão. Comecei a vir aqui aconselhar-me, a fazer perguntas, a entusiasmar-me com este mundo. Como estava desempregada e houve uma vaga, acabei por ficar cá a trabalhar.".O objetivo da contratação de Sara é também atrair um público feminino que ainda falta à Bike Zone: "Claro que meninas e mulheres podem usar as bicicletas e os acessórios que temos aqui à venda mas a sensibilidade é diferente e importa estar atento às necessidades deste setor do mercado, também ele em expansão." Nos planos próximos de Sara está a realização de circuitos velocipédicos que incluam um número cada vez significativo de mulheres..Em matéria de locomoção na cidade, Afonso Paulo, livreiro, 45 anos, viu a pandemia mudar-lhe as rotinas. Natural do concelho de Tomar, era na "pasteleira" que o pai, carteiro de profissão, entregava cartas e encomendas, em que iam à missa ou ao cinema ao domingo: "Era um bocadinho como no filme italiano O Ladrão de Bicicletas. Se alguém a levasse, por muito modesta que fosse, não havia dinheiro para comprar outra e a vida, tanto de trabalho como de lazer, tornar-se-ia muito mais difícil.".Aos 18 anos, mudou-se para Lisboa e deixou o velocípede na casa paterna. Muitos anos mais tarde, compraria um modelo de estrada mas só para os fins de semana, junto ao rio. Para o trabalho e para levar os miúdos à escola optava pela dupla comboio/metro. "Com o regresso ao trabalho depois do confinamento, em maio, confesso que não me sentia seguro nos transportes. Optei por uma bicicleta desdobrável que trago gratuitamente no comboio e depois uso-a no resto do percurso, já em Lisboa. Não me tenho dado mal e descobri um novo gosto por este mundo tão particular." Para o demonstrar, vai ao escaparate da livraria onde trabalha e mostra-me, acabadinho de sair, um pequeno volume com chancela das Edições 70: "Conhece este? Do antropólogo francês Marc Augé, O Elogio da Bicicleta", e lê-me o seu excerto favorito: "O milagre do ciclismo devolve à cidade o seu carácter de terra de aventura ou, pelo menos de travessia. O ciclismo é um humanismo: Pedalo, logo existo.".Hugo Jacinto, que considera as bicicletas "um trabalho de paixão", tende a concordar com o empolgado elogio de Augé. "Penso que as bicicletas vieram para ficar nas nossas cidades, sendo muito mais do que uma moda circunstancial criada pela pandemia." Mas reconhece que muito está por fazer em matéria de práticas de cidadania: "Se os ciclistas querem criar, de facto, uma cultura, têm de se saber comportar. Têm de respeitar passadeiras, sinais vermelhos, para serem também eles respeitados pelos outros. Não é aceitável (e, no entanto, acontece) que a mesma pessoa tenha comportamentos diferentes ao volante de um automóvel e em cima de uma bicicleta. Do mesmo modo, os peões têm de perceber que este é um veículo como outro qualquer.".Esperando que a excecional performance de João Almeida no Giro d'Italia traga ainda mais entusiasmo, Hugo sublinha que os grandes trunfos da modalidade são a liberdade individual e a sustentabilidade ambiental, "um valor a que damos importância cada vez maior." Mesmo que a camisola rosa não esteja ao alcance de todos, o vento na cara, em vez do fumo do escape, já é prémio bastante.