Elogio do irreal segundo Eduardo Lourenço

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Reencontro a escrita de Eduardo Lourenço (1923-2020) através de um pequeno grande acontecimento cinéfilo: com chancela da Fundação Calouste Gulbenkian, já está disponível o Volume XII das Obras Completas de Eduardo Lourenço intitulado "Segundo Paraíso: Do Cinema como Ficção do nosso Sobrenatural".

Cinefilia devolvida à sua verdade primordial, entenda-se. Não o inventário mais ou menos superficial e ruidoso que o marketing nos impõe, gerando uma "actualidade" efémera que a crítica de cinema, mesmo com os seus contrastes e contradições, tem cada vez mais dificuldade em pontuar, ainda menos contrariar. Antes um genuíno amor do cinema - e pelo cinema. De tal modo que o cinema reaparece como mecanismo de enigmática transparência capaz de desafiar a realidade em que dizemos estar inseridos, entregues que estamos ao poder da "objectividade" televisiva.

Ver ou não ver. Citando o autor, eis a questão, condensada numa nota com data de 26 de maio de 2003: "O cinema é o irreal em estado puro. Não o tocamos do outro lado do espelho. É ele que nos toca. Ou, antes, que nos arrasta para o interior da sua irrealidade como nenhuma realidade o pode fazer. Com a invenção do cinema, que não acabou, a existência natural dos homens terminou".

Semelhante afirmação adquire renovada importância neste nosso presente em que, no espaço mediático, quase todas as obras de arte - com destaque para os romances e os filmes - tendem a ser arregimentadas para a correção política que as obriga a um "significado" mais ou menos edificante. Exemplo corrente: qualquer ficção centrada na odisseia de uma personagem feminina é frequentemente ignorada nas suas especificidades narrativas, acabando reduzida a um panfleto "feminista". Mais do que isso: esse modelo de grosseira generalização é tratado e incensado como uma celebração de "todas" as mulheres.

O que assim se menospreza ou, pura e simplesmente, se ignora é a obra de arte como acontecimento singular, sem equivalente que a possa duplicar em qualquer outro domínio do nosso viver. Ao reconhecer o fim da "existência natural dos homens", Eduardo Lourenço vislumbra o novo mapa existencial que o cinema desenhou, lembrando um exemplo modelar: "Fomos condenados ao sobrenatural. No mesmo instante, o antigo sobrenatural tornou-se supérfluo. Ninguém o percebeu melhor que Woody Allen em A Rosa Púrpura do Cairo, a versão inversa do mito da Caverna que era já uma visão inversa cinematográfica do mundo".

Vale a pena recordar que A Rosa Púrpura do Cairo tem a Grande Depressão como pano de fundo, centrando-se na personagem de Celia (Mia Farrow), uma mulher desamparada que encontra alguma alegria nos filmes de aventuras de Tom Baxter (Jeff Daniels) - até que o próprio Baxter a vê na plateia, apaixona-se por Celia e... sai do ecrã para se encontrar com ela... A naturalidade surreal com que isso acontece está admiravelmente condensada no cartaz do filme concebido pelo artista belga Jean-Michel Folon.

Na introdução do volume, Pedro Mexia, também responsável pela selecção de textos, sublinha essa estranha ambivalência em que, apetece dizer, mais do que olharmos para um ecrã, estamos perante um ecrã cujas personagens nos observam: "Segundo Lourenço, o cinema não é simplesmente uma arte onírica: é um sonho exterior que faz da vida, e não do sonho, o lugar sobrenatural por excelência. O cinema não reproduz a naturalidade da vida, mas sobrenaturaliza-a, faz dela mais fascinante do que é na verdade".

Num texto de 2001, em que evoca memórias infantis e juvenis dos filmes, Eduardo Lourenço insiste no labirinto que o cinema instaurou, explicando diferentes modos de percepção do tempo: "Na pintura, o carácter da imagem permanece fixo; o tempo, realmente, não passa. Mas no cinema, pela primeira vez, imita-se a vida tal como nós a vemos através da percepção do que se passa à nossa volta - uma espécie de vida de segundo grau. O paradoxo é que essa vida se impõe como mais interessante, mais fascinante, com uma capacidade de emoção possível superior à da própria vida." E acrescenta, recusando qualquer função utilitarista do gesto artístico: "De resto, foi sempre essa a função da arte, não uma outra."

Não sei se Eduardo Lourenço aceitaria tal extrapolação, mas creio que tudo isso se foi adensando, gerando novas clivagens de percepção e pensamento, através da multiplicação de ecrãs em que hoje vivemos - e do efeito "naturalista" e inquestionável que muitos deles querem produzir.

Lembro apenas uma curiosidade histórica. Assim, em 1985, poucas semanas depois da estreia de A Rosa Púrpura do Cairo, surgia, com realização de Steve Barron, o teledisco da canção Take on Me, da banda norueguesa A-ha, expondo um jogo de ecrãs - a jovem protagonista "entra" no mundo de banda desenhada dos músicos - cujo paralelismo com a encenação de Woody Allen é, no mínimo, sugestivo. Quero acreditar que Eduardo Lourenço não ficaria chocado com a extensão de tudo isto à (aparente) ligeireza do pop rock.


Jornalista

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