A política é, neste final de segunda década de século XXI, uma fonte de stress para os americanos..Um estudo do Pew Research Center identificou que perto de 50% dos republicanos e 60% dos democratas dizem que discutir temas partidários (aborto, imigração, armas) pode ser "stressante e frustrante". E não estamos a falar apenas em estados de espírito: os inquiridos descrevem sintomas físicos como "dores no peito, dores de cabeça e insónias"..Era difícil encontrar forma mais reveladora para ilustrar o momento disruptivo em que caiu a política americana..Costumávamos olhar para a América como a nossa inspiração. Será que ela ainda terá força para recuperar essa dimensão redentora?.Barack Obama provou, em 2008, que era possível fazer uma campanha presidencial vencedora com uma mensagem crítica mas dentro do sistema..Só que o que aconteceu na política americana na década seguinte alterou quase tudo. Donald Trump, em 2016, foi o sinal mais claro de que algo de muito profundo se tinha quebrado..O encanto de vir da margem."Hoje, milhões e milhões de famílias americanas estão a lutar para conseguirem sobreviver num sistema que está viciado pelos mais ricos e mais bem relacionados. Os trabalhadores americanos estão a ser prejudicados por um grupo pequeno que detém demasiado poder, não apenas na nossa economia, mas também na nossa democracia." ELIZABETH WARREN, anúncio de candidatura presidencial, Lawrence, Massachusetts, 9 fevereiro 2019.Em contexto pré-2008, Elizabeth Warren não teria qualquer hipótese de ser a escolha presidencial dos democratas, quando, na mesma corrida, existe o vice-presidente de Obama durante oito anos e senador querido dos democratas e respeitado pelos republicanos durante mais de três décadas..Mas Joe Biden não tem tração junto de segmentos que não gostam de Trump mas também querem sentir uma genuína crítica do seu candidato ao "sistema"..Em 2016, o primeiro grande sinal de protesto não veio do campo republicano, com a nomeação de Trump. Veio mesmo do lado democrata, com os incríveis 43% obtidos por Bernie Sanders - senador que durante anos nem sequer estava inscrito no Partido Democrata..Sanders volta a ser candidato, só que o Feel the Bern de 2016 tem novas formas de expressão nesta corrida para 2020..A força da clareza.Quem está a agarrar o momento é uma mulher de 70 anos, senadora democrata pelo Massachusetts, com mensagem clara e muito assertiva: a banca precisa de mais regulação; a classe média precisa de mais proteção; os estudantes endividados têm de ter apoios do Estado para benefício do futuro da América; os impostos estão muito baixos para os mais ricos e demasiado altos para todos os outros..Parecem ideias mais ou menos óbvias e de bom senso, mas o atual momento da sociedade americana não beneficia dessas qualidades..E a força do discurso de Elizabeth reside, precisamente, na clareza com que expõe o que é verdadeiramente importante - uma clareza que a pode transformar na segunda mulher americana a chegar à nomeação presidencial de um grande partido do sistema e primeira a atingir o posto de presidente..Warren acusa Trump de ser um excelente presidente apenas para os bilionários e péssimo para o resto da América..Ela, que dirigiu a agência de proteção ao consumidor criada por Barack Obama nos primeiros anos de recuperação pós crise e depois saiu por não sentir que o então presidente tivesse força suficiente para impor a regulação que era necessária, sabe que a chave da equidade está na capacidade que o poder político possa ter de impor regras aos poderosos de Wall Street..Os bilionários estão a ficar nervosos.As suas propostas fiscais estão a pôr os bilionários nervosos. Até os que têm criticado as políticas socialmente injustas dos republicanos..Bill Gates torce o nariz em relação à dimensão da taxação defendida por Elizabeth às maiores fortunas: "Paguei mais de dez mil milhões de dólares de impostos. Se tivesse de ter pago o dobro, 20 mil milhões, OK. Mas quando me dizem que passarei a pagar cem mil milhões, aí começo a ter de fazer contas sobre o que me sobra", apontou há dias na Dealbook, conferência organizada pelo The New York Times..O plano Warren é transformador em relação à lógica de acumulação da riqueza que levou a um profundo agravamento das desigualdades na América, nas últimas três décadas..Patricia Cohen, no The New York Times, fez as contas: se as propostas de Warren vigorassem nos EUA desde 1982, Bill Gates tinha tinha arrecadado 14% dos 97 mil milhões de dólares que declarou em 2019; Jeff Bezos apenas 30% dos 160 mil milhões obtidos no último ano fiscal e Mike Bloomberg apenas 24% dos 52 mil milhões que declarou..Donald Trump repete à exaustão que "os EUA estão a viver um período económico fantástico", somando crescimento económico (que, a propósito, já foi bem maior) e desemprego historicamente baixo..Mas, tal como Trump percebeu em 2016, o problema é que essa prosperidade só beneficia alguns. As políticas imprimidas por esta administração agravaram o problema, em vez de o minimizar..Do pessoal ao político.Elizabeth Warren, que aos 12 anos viu a família cair na bancarrota depois de um ataque cardíaco do pai, começou por ser republicana, nos anos 80, por acreditar que era no GOP que havia mais ligação às bases que exigiriam a regulação dos mercados. Mas mudou-se para os democratas em 1996..Como professora em Houston e em Harvard, e como congressista, Elizabeth bateu-se sempre por regras mais claras e justas e por soluções que evitassem que os consumidores caíssem na insolvência..No seu plano, Warren aponta o dedo às farmacêuticas e propõe a alocação de cem mil milhões de dólares na Saúde, uma parte deles diretamente aplicados nos estados americanos que mais sofrem com overdoses de pessoas que se viciam em drogas obtidas em medicamentos baratos, de livre acesso.."Estamos aqui para ganhar uma luta que moldará as nossas vidas, as vidas dos nossos filhos e as vidas dos nossos netos. Porque o homem que ocupa agora a Casa Branca não é a causa do que está errado, é apenas o mais recente - e mais extremo - sintoma do que correu mal na América. O produto de um sistema viciado que alavanca os trunfos dos mais ricos e poderosos e atira todos os outros para um lugar pior." ELIZABETH WARREN, anúncio de candidatura presidencial, Lawrence, Massachusetts, 9 fevereiro 2019.O que é interessante na proposta de Warren é que ela parece conseguir atingir segmentos contraditórios..Tal como Trump, também fala num "sistema viciado". Mas com uma diferença fundamental: enquanto Donald mente e calunia, dizendo que houve votos fraudulentos a favor de Hillary em 2016, Elizabeth foca a sua crítica nas regras injustas que facilitam a vida aos mais poderosos e impedem o caminho da classe média trabalhadora e honesta..A narrativa de Donald Trump transforma a América num sítio mais sombrio do que, na verdade, é. A mensagem de Elizabeth Warren é forte e mostra-nos uma realidade preocupante. Mas, em vez de lançar lama e confusão (como faz Trump), aponta soluções para que as injustiças possam, pelo menos, diminuir..Trump diz que vai salvar o povo americano de "um sistema viciado". Warren denuncia Donald como a pior consequência que esse sistema já ofereceu à América..Se 2016 foi o ano da "penalização do establishment" (Hillary Clinton que o diga), 2020 pode vir a ser o ano de especificação sobre que tipo de sistema querem os americanos mudar..A favorita, para já.Warren é favorita à nomeação. Está muito bem colocada para ganhar no Iowa e disputa com Biden o primeiro lugar no New Hampshire..A história das corridas democratas mostra que quem ganhar nos primeiros dois estados dificilmente perde a nomeação. E diz-nos também que é improvável alguém não obter um primeiro lugar em algum dos dois primeiros estados e depois obter a nomeação (a exceção foi Bill Clinton, que em 1992 não foi sequer a jogo no Iowa e foi segundo no New Hampshire, partindo daí para a vitória como comeback kid)..Mas até nisso esta corrida de 2020 está a ser diferente: Joe Biden está com problemas nos estados de arranque, mas tem enorme avanço na Carolina do Sul, o terceiro estado, pela sua superioridade no eleitorado negro, e em muitos dos estados da Super Terça-Feira..Sanders ainda não deitou a toalha ao chão e Pete Buttigieg - o jovem mayor de South Bend, Indiana, que tenta aproveitar o eleitorado moderado descrente em Biden - está a crescer no Iowa (não é impossível que seja a grande surpresa da primeira noite eleitoral americana de 2020)..Vai ser uma corrida interessante..Olhem para cinco estados."O nomeado democrata vai chegar à eleição geral exausto e, provavelmente, falido. E nessa mesma altura terá de unir o partido depois de uma caminhada desgastante e divisiva. Vai ter de fazer uma campanha diferente da que fez para chegar à nomeação e vai ter de falar para audiências muito diferentes. Se não souber escolher bem os alvos, não vai conseguir chegar lá." DAVID PLOUFFE, diretor da campanha Obama 2008.Um dos maiores riscos de uma corrida presidencial democrata é o da dispersão..Quem acha que "tudo é relevante" acabará por não saber descobrir o que é verdadeiramente relevante..Se a história das últimas corridas presidenciais nos mostra um leque de 10 a 12 "estados flutuantes", a verdade é que cada eleição tem dois ou três locais decisivos..Em 2016, e de forma totalmente inesperada, foram Michigan, Wisconsin e Pensilvânia. Seja Warren ou Biden, o nomeado democrata para 2020 terá de olhar com especial atenção para esses três casos - e terá de vencer pelo menos dois deles..Será necessário também apostar no Arizona - estado que não prefere um candidato presidencial democrata desde Bill Clinton em 1996, mas cujo peso hispânico tem feito diminuir o pendor republicano, de eleição para eleição - e na Carolina do Norte (tendencialmente conservador, mas com percentagem muito significativa de negros)..Em 2016, Trump venceu Hillary no Arizona por 190 mil votos e na Carolina do Norte por 170 mil.."A nossa luta é por uma mudança grande e estrutural. Esta é a batalha das nossas vidas. A batalha pela construção de uma América onde os sonhos são possíveis, uma América que funcione para todos. Eu estou nessa luta com tudo o que tenho de mim. E é por isso que estou aqui: para declarar que sou candidata à presidência dos Estados Unidos da América. A verdade é que estou nesta luta há muito, muito tempo." ELIZABETH WARREN, anúncio de candidatura presidencial, Lawrence, Massachusetts, 9 fevereiro 2019.Elizabeth Warren pode não ser a candidata mais óbvia - mas o duro processo de triagem até à nomeação está a indicar que talvez seja a mais preparada e a que pode reunir apoios mais diversos..Será que o seu plano poderá revelar um novo desenho eleitoral capaz de criar enorme surpresa em novembro de 2020?.* autor de quatro livros sobre as presidências norte-americanas