Elisabete Matos. Uma semana a ensinar jovens que sonham com os palcos

Soprano portuguesa dedicou uma semana da sua agenda ao trabalho com jovens cantoras vindas de todo o país
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O cenário é o Salão Nobre do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) e a mestra é a mais internacional e consagrada das cantoras líricas portuguesas: a soprano Elisabete Matos. Durante uma semana, uma dezena de alunas pôde trabalhar com Elisabete, culminando os cinco dias de trabalho num recital de participantes (foi no sábado dia 28).

Mas entremos na sala onde tu- do se passa: nas três sessões a que assistimos, impressionou-nos o empenho físico de Elisabete e a sistemática ênfase colocada pela ministrante no lado físico do ato canoro - "porque o canto é intelectual e físico e elas têm de perceber fisicamente como funciona o ato do canto", dir-nos-á Elisabete. Para a própria, são "cinco dias muito cansativos, porque elas merecem que lhes seja dado tudo o que tenho". E Elisabete não se poupou mesmo: o raro é vê-la sentada, ouvindo apenas. De resto, as suas indicações cobrem todo o espectro da arte canora, das basilares colocação, afinação e trabalho sobre a fonética até questões de veracidade interpretativa, sempre que a preparação das alunas o permitia.

O lado ginastical do canto

A dada altura, Elisabete mandou uma aluna deitar-se no tapete e, logo de seguida, deitou-se ela própria. O objetivo era tão-só mostrar que a pressão no abdómen e sobre o diafragma quando se faz a vulgar abdominal é igual ao que é desejado quando se canta.

Outra vertente da sua intervenção passava por tocar (ou sugerir o toque) nas jovens enquanto cantavam: dando pancadinhas no tórax, premindo o abdómen, recuando ombros e omoplatas; ou então compondo a expressão facial - a maschera, que é palavra recorrente no seu discurso, "mas que não é cara de riso!", avisará!; ou ainda arqueando para trás as costas, para "levar" as alunas aos agudos; ou fazendo-as fletir os joelhos, etc. Elisabete quase nunca para: a "força da natureza" que vemos no palco está toda também ali. E depois, cantora que se preze há de exemplificar com a voz o que quer, e aí podíamos ouvir o timbre distinto do seu spinto quase dramático!

O lado ginastical do canto teve novo momento alto, quando Joana David, pianista que acompanhava as cantoras, no quarto mês de "esperanças", disse, a brincar: "Se calhar, aulas de ginástica pré-parto podem ajudar..." O ato de dar à luz esteve também perto, quando Elisabete comparou o trabalho do diafragma às respirações que acompanham as contrações; e antes, já ela afirmara que as cantoras "têm de levar o som até ao períneo", acentuando com isso a natureza visceral do canto. É que, como ela diz, "nós vivemos e dependemos de sensações, porque não vemos o nosso instrumento".

Retratos de participantes

As alunas encontram-se em estádios muito variados de evolução vocal, desde aquelas que mal saíram da adolescência até às que já "dobraram" os 30. Entre as primeiras conta-se Paulina Sá Machado, 20 anos, vinda de Braga: "Sou aluno da professora Dora Rodrigues e da professora Elisabete [Matos] na ESART de Castelo Branco, onde frequento o 3.º ano da licenciatura." Define-se como soprano lírica e decidiu inscrever-se "primeiro para trabalhar mais continuadamente com esta professora, depois por causa da "envolvente": o facto de ser no São Carlos". Paulina só por uma vez estivera no TNSC, em fevereiro último, para ver Elisabete Matos encarnar a protagonista do Macbeth verdiano, e não é a única a sentir o fascínio do São Carlos: também Ana Isabel Carvalho, soprano lírico (de feição mais ligeira) de 29 anos, vinda de Barcelos, no-lo referiu: "Para mim, foi mesmo a primeira razão!" Como Paulina, Ana (que é cega) só viera uma vez ao São Carlos e, como Paulina, também frequenta a ESART: "Entrei neste ano para o mestrado em Performance, de propósito para estudar com Dora Rodrigues e Elisabete Matos." À masterclass veio buscar "um trabalho mais sistemático com a Prof.ª Elisabete, pois ela em geral só vai uma vez por mês a Castelo Branco". Pelo que foi "uma oportunidade de consolidar aprendizagens" para esta licenciada pelo Conservatório de Gaia que canta no Coro Cantacellis da sua cidade natal - "sinto que vou levar muito daqui para o meu futuro próximo". Quiçá levará também a frase "procura na tua mente a expressão de sorriso" que Elisabete a dada altura lhe lançou...

Crise de identidade vocal

Leila Moreso (irmã do contralto Cátia Moreso), de 31 anos, é talvez a mais experiente do grupo e passa atualmente por algo a que poderíamos chamar de "crise de identidade" vocal - "vim aqui sobretudo para ouvir outra opinião sobre a definição, a classificação da minha voz e ouvir os conselhos dela sobre o repertório que devo trabalhar". Meio-soprano de origem, a voz de Leila está a evoluir clara (e sonoramente!) para a tipologia de soprano jung dramatisch. "Isso é fascinante, por um lado, mas é desesperante por outro, porque na minha idade convém saber que papéis devo cantar ou aceitar, também para que a minha voz possa evoluir na direção correta", diz-nos. Elisabete, numa sessão com ela, foi bem clara sobre o que pensa da sua voz através do repertório para o qual a "dirigiu". Cremos que terá ido elucidada.

Outra participante em busca de rumo era Cristina Ribeiro, de 29 anos, formada por Nuno Villalonga no Conservatório: "Estou numa fase de transição e queria levar daqui orientações, para saber o que preciso fazer, corrigir, trabalhar, antes de poder pensar em algo mais sério no canto", conta-nos. "Ouvi aqui algumas coisas que não esperava e outras que estava muito à espera, que irei guardar e aplicar. Depois verei se vale a pena continuar com o canto ou se devo tentar outra saída..." A ver pelo que assistimos, Cristina foi encorajada, apesar de ter sido "apertada". "Tenho de as "apertar" - justifica-se Elisabete -, porque a vida são dois dias e as carreiras não esperam para sempre!" Quem te avisa, teu mestre é.

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