Eles querem é andar de bicicleta
"I want to ride my bicycle, I want to ride my bike". Quarenta anos depois de Freddie Mercury se inspirar numa etapa da Volta à França para compor aquele que é, provavelmente, o mais popular hino de apologia das bicicletas, não há como negar a evidência: elas estão cada vez mais por todo o lado. Não estamos em Pequim, nem temos a cultura ciclista que se move em Amesterdão, mas as bicicletas vão entrando em modo acelerado na paisagem dos centros urbanos (e não só) em Portugal. Mulheres, homens, mais velhos, mais novos, ciclistas de longa data ou curiosos em iniciação, commuters diários ou cicloturistas de fim de semana. O 1864 foi à procura de quem adotou a bicicleta na sua vida.
No Hospital de Santo António, no Porto, já quase todos se habituaram a ver Luísa Carvalho chegar na sua Gazelle, marca por que se apaixonou na Holanda, de onde veio com a "utopia de mudar o mundo" numa bicicleta. Funcionários, médicos e até mesmo alguns pacientes já sabem que a Dra. Luísa que encontram de bata branca no hospital é a mesma com quem por vezes se cruzam quando ela vai a pedalar pelas ruas da cidade, diariamente, entre casa e o hospital.
"A bicicleta tem um poder unificador, quebra barreiras sociais. Não há aquela coisa do "ai a senhora doutora". É um fator de proximidade com os doentes. Muitos veem-me chegar de bicicleta e depois fazem-me perguntas sobre isso", retrata.
O clique deu-se há mais de dez anos, após duas semanas na Holanda. "Vim de lá com essa utopia de querer mudar o paradigma da cidade e servir de exemplo de que era possível, também no Porto, instalar essa cultura, apesar do mito de que é uma cidade difícil, com muitos altos e baixos", recorda.
A "tendência ecologista" também influenciou. Tal como o fator económico, "pois andar de bicicleta é muito mais barato", e o físico, "já que assim também podia fazer exercício sem ter de ir para um ginásio fechado e ainda ter de pagar por isso".
A primeira dificuldade com que se deparou foi encontrar no Porto uma bicicleta como as que tinha visto na Holanda. "Só havia praticamente bicicletas de montanha e de desporto." Acabou por encontrar uma "velhinha, na cave de uma loja do centro". Mais tarde mandou vir uma da Holanda ("agora já se veem cá facilmente também").
Hoje, diz, já não quer mudar o mundo. Basta-lhe a felicidade de ter mudado o seu. Mesmo se, em redor, se vê cada vez mais "acompanhada". A bicicleta permitiu-lhe "descobrir a cidade de outra maneira, explorar trajetos, conhecer ruas novas", revela. "Passei a identificar muito mais as lojas, as características de um determinado sítio, o que há de novo na cidade. Permite uma relação diferente com o tempo e com as pessoas. Estou muito mais próxima do que é a vida da cidade", diz a Dra. Luísa, uma orgulhosa commuter [que faz regularmente o trajeto entre trabalho e casa] de bicicleta.
Durante mais de um ano, Miguel Pereira e a namorada andaram a viajar pelo Sudeste asiático em regime de work exchange (trabalho em troca de comida ou dormida). Deixaram empregos para trás e resolveram ir à aventura, "aproveitar a vida". No regresso, e com a namorada a ter de voltar ao Funchal, Miguel tinha uma decisão para tomar.
Ainda "não preparado" para voltar a sentar-se num escritório, o publicitário e marketeiro digital olhou para a bicicleta velhinha que tinha arrumada em casa da mãe, em Sesimbra, e resolveu tirar-lhe o pó para fazer... uma Volta a Portugal. "No fundo, pensei que era uma boa altura para desfazer aquele cliché de andar a conhecer o outro lado do mundo sem conhecer bem o nosso país", conta.
E porquê a bicicleta e não o carro ou a moto? "Não sou um fundamentalista das bicicletas. A maior experiência tem sido esta. Mas é o meio de transporte que permite explorar da melhor forma o ambiente que nos rodeia. Cada cem metros de estrada podem trazer uma coisa nova para contemplar ou explorar", explica, ao telefone, desde Penedono, nas fronteiras da Beira com os socalcos da Região Demarcada do Douro.
Quando morava e trabalhava em Lisboa, perto do centro, Miguel fazia a pé o trajeto entre casa e emprego, "três quilómetros para cada lado". O histórico com as bicicletas vinha "sobretudo da infância, em zona de campo, em Sesimbra, onde o melhor meio para andar de um lado para o outro era a bicicleta". Agora, nesta aventura pelo país, tem reforçado a "sensação de autonomia e independência que a bicicleta dá". E isso, diz, "é um sentimento que não tem preço".
A velhinha bicicleta, que até era "do primo Manuel mas foi ficando lá por casa", tem-se portado bem. Sofreu algumas alterações (pneus, guiador, punhos ergonómicos e um retrovisor "que já deu muito jeito"), recomendadas por cicloturistas num grupo de Facebook, e tem aguentado as exigências. Apenas um ligeiro problema com uma câmara de ar, resolvido "pelo senhor Nelson, de 70 anos, com uma oficina em Trancoso". E essa é outra das coisas extraordinárias desta experiência, sublinha: "Acho que as pessoas têm uma simpatia maior quando veem um viajante sozinho de bicicleta", diz, antes de voltar ao caminho, numa aventura que vai partilhando diariamente no seu Facebook.
De volta ao Porto, encontramos Manuel Barros, que aos 70 anos não abdica da sua Kalkhoff para fazer o trajeto entre casa e o trabalho, em plena Baixa. Antigo oficial do Exército, este técnico de informática só descobriu o prazer da bicicleta já aos 50 anos, quando comprou um apartamento junto à praia de Esmoriz. "Foi quando resolvi comprar uma bicicleta para dar lá umas voltas", conta.
Para enfrentar o trânsito diário no Porto, contudo, só ganhou coragem para pegar na bicicleta ainda mais tarde, em 2010, inspirado na aventura de Paulo Guerra Santos, um ciclista que resolveu fazer "100 dias de bicicleta por Portugal". "Pensei: "Este tipo anda por Portugal inteiro e eu tenho medo de levar a bicicleta para o trabalho." E a partir daí uso todos os dias a bicicleta no Porto, exceto dois ou três dias por ano, em temporal."
O prazer das bicicletas galopou e Manuel inscreveu-se também na federação de cicloturismo, na qual é atualmente um dos responsáveis pela delegação norte. Já fez "duas vezes a viagem até Santiago de Compostela", na Galiza, um Porto-Figueira da Foz e outro Figueira-Lisboa. "É a melhor maneira de conhecer locais, para quem gosta de natureza, como eu", diz. A pedalar, todos os dias são de descoberta. "Vivo no Porto há tanto tempo e praticamente não conhecia aquela marginal da Afurada [Gaia]. Agora, vou descobrindo essas zonas todas. Para mim, andar de bicicleta não é praticar desporto, é poder contemplar", refere, feliz por "encontrar cada vez mais gente de bicicleta", mesmo que o Porto ainda não seja "uma cidade amigável para os ciclistas". "Não está preparada, tem poucas ciclovias".
Com várias Voltas a Portugal no currículo, Micael Isidoro quase nasceu destinado à modalidade. Filho de um antigo mecânico de Joaquim Agostinho, começou cedo a conviver com o mundo das bicicletas ao mais alto nível. Aos 13 anos, começou nas provas de BTT. Aos 18, apostou a sério no ciclismo de estrada.
Mas foi no último ano, no entanto, em interregno de carreira, que Micael redescobriu "o prazer terapêutico" de um simples passeio de bicicleta pela cidade. "Quando usamos a bicicleta em competição é, por vezes, algo violento, causa um período de saturação. E quando acaba competição é natural queremos afastar-nos da bicicleta um pouco. Mas neste ano usei também a bicicleta como meio de transporte e é muito libertador, relaxante", refere o ciclista natural do Cadaval, mestre em alto rendimento e preparador físico de alguns ciclistas, além de dar aulas em ginásios.
"Quando se compete é a bicicleta que desfruta de nós, neste ano fui eu a desfrutar outra vez da máquina", explica. A bicicleta é também aquilo que o vai levar até aos Himalaias, no fim do mês, para uma aventura de BTT que termina em Dharamsala, o refúgio oficial do Dalai Lama e dos exilados tibetanos no noroeste da Índia. "Já lá estive no ano passado. É uma experiência invulgar, que nos permite chegar aos sítios mais selvagens. E a grandeza da montanha é impressionante", conta. Também aí, o poder da bicicleta é irresistível. "A bicicleta é um fator de aproximação entre culturas também. Os monges aproximam-se de nós, gostam de vir ver as bicicletas, fazer perguntas", relata Micael, que não tem dúvidas: "As pessoas são mais felizes a andar de bicicleta." Era mais ou menos o que cantava Freddie Mercury com os Queen.