"Tinha a ideia de que, se fosse para a faculdade, me ia incluir de outra forma, sem ações muito hierarquizadas, que reproduzem muitas vezes uma lógica militarista e aspetos da sociedade com os quais não concordo. Refiro-me a questões homofóbicas e machistas, por exemplo." João Ponte, de 19 anos, aluno do primeiro ano de Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), é antipraxe. Vê os rituais académicos como "humilhação, uma reprodução ideológica: eu faço, porque já me fizeram; eu posso, porque sou mais velho"..Marcamos encontro à entrada da república Rás-Teparta, a casa de João desde que deixou Pombal para ingressar no ensino superior. "É neutra. Eu sou o único antipraxe", explica, enquanto nos conduz até à esplanada do mítico café Garcia, na Rua das Flores. Das janelas sai o som de um cavaquinho que serve de banda sonora para a nossa conversa, enquanto João recorda a primeira noite em Coimbra: "Não dormi com a ansiedade do primeiro dia de aulas." Quando chegou à faculdade, "disse que era tendencialmente antipraxe". Os mais velhos - chamados "doutores" - acataram a sua decisão. "Tentam persuadir, não obrigam. Mas há cursos onde há uma grande coação. Há pessoas que vêm do norte, do interior, do Alentejo, e veem a praxe como um sítio para conhecer pessoas." Mas, do lado oposto, correm o risco de encontrar quem "procura na praxe um espaço de afirmação pessoal"..Antes de chegar ao ensino superior, João tinha a ideia de que a praxe se baseava nas "hierarquias, na submissão, no ouvir e obedecer". Constatou, no entanto, que "há algumas mais leves", mas, assegura, "continua a haver praxe abusiva, que será a praxe no seu estado mais puro". Da mesa ao lado, uma voz mais velha interrompe a entrevista para dizer: "No início, a praxe não era nada disto. Não havia humilhações, ordinarices como há agora. Tornou-se um ramo do fascismo." João abana a cabeça, concorda. Documentou-se bem sobre a tradição académica, o significado que o traje adquiriu, a luta das repúblicas contra a fundação..É "tristeza" que sente quando vê os colegas "caloiros" obedecerem aos "veteranos" de olhos postos no chão, ficarem "de quatro" ou "medirem as escadas monumentais com um palito". "Sinto tristeza porque eles podiam estar a fazer outras coisas. Ali, aprendem a ouvir e a obedecer. A praxe não fomenta o pensamento crítico." É o mesmo sentimento que o invade em momentos como o cortejo da latada. "Que impõem uma imagem do estudante como acrítico e alcoólico." Além disso, afirma, "há outras formas de beber e cantar, que não através da humilhação"..Na opinião do estudante de Sociologia, "há uma grande irresponsabilidade por parte das faculdades, que, de uma maneira geral, não criam programas de inclusão alternativos à praxe". Mas há exceções, tanto por parte das instituições de ensino superior como de grupos de estudantes. Em Coimbra, exemplo disso é o Cria'ctividade, um projeto que nasceu por iniciativa de algumas repúblicas de estudantes, com o objetivo de promover ações para os jovens se integrarem, sem hierarquias, sem caloiros ou doutores, e onde quem aceita a praxe também é bem-vindo.."Não sou contra, mas vai contra a minha personalidade".Viajamos até ao Instituto Politécnico de Tomar (IPT), uma instituição de ensino superior mais recente, onde os primeiros cursos entraram em funcionamento em 1986. Não tarda até encontrarmos jovens com coletes refletores vestidos e cones ao pescoço, outros com CD pendurados ao peito. São caloiros de engenharia civil e informática, respetivamente. Uns estão de pijama, outros têm a roupa vestida pelo avesso. "Faz parte da praxe. Têm de se vestir assim até ao dia 7 de novembro", explicam-nos os "doutores"..Se aceitasse a praxe, Maria Miguel Gala, de 18 anos, teria de andar o dia todo com uma toalha de praia e chinelos ao pescoço, elementos relacionados com o curso - Gestão Turística e Cultural. "São coisas que chocam com a minha personalidade. Decidi logo no 9.º ano que, quando fosse para a universidade, não ia participar", diz ao DN. Considera que há situações "humilhantes, com uma base autoritária e brincadeiras parvas", com as quais não se identifica. "Ovos e farinha no cabelo? Não acho bem.".Ressalvando que a praxe no IPT é "calma", a jovem, natural de Aveiro, diz que não quis sequer experimentar. "Não vi nada de especial, mas temos de saber recusar. Não sou anti nem a favor, mas cada um deve fazer o que acha melhor para si", sublinha. Diz que se sente integrada, mas reconhece que "talvez não haja tanto à vontade para falar" consigo como com os colegas que aderem aos rituais académicos..Rúben Anastácio, de 18 anos, decidiu aceitar a praxe por influencia do irmão, que "participou e gostou". Para o jovem, as coisas não correram tão bem. É muito tímido. "Sou demasiado introvertido para fazer determinadas atividades. Não sou contra, mas vai contra a minha personalidade. Além disso, ocupava muito tempo livre." Ao fim de pouco mais de uma semana, desistiu. "E até já tinha infringido um pouco as regras, na indumentária.".No Curso Técnico Superior Profissional de Informática (TPSI), Rúben diz que começaram por aceitar as praxes cerca de 30 alunos. "Mas ficaram apenas cinco ou seis. Se calhar também tinham uma ideia errada. É uma escolha de cada um, mas há outras maneiras de integrar as pessoas." Reconhece que houve situações engraçadas, como "inventar histórias", mas existem outras menos agradáveis. "Se for como castigo, pode ficar-se de três [ajoelhado com a cabeça no chão] durante muito tempo.".Quando confrontados com um "não" à praxe, os "doutores" tentam perceber as motivações do estudante. "Muitos não vêm por medo, o que está relacionado com o que veem na comunicação social. Acham que os vão humilhar, que a praxe é abusiva, mas depois percebem que é uma brincadeira. Nós explicamos que é uma forma de os integrar. Há alguns que experimentam e gostam, outros desistem", explica Ana Antunes, aluna do 2.º ano de Engenharia Informática, vestida com o traje académico de Tomar..A madrinha, Andreia Bernardo, a frequentar o primeiro ano de mestrado, vai mais além: "Há pessoas que não gostam que lhes gritem, que falem alto. Como costumamos dizer: a praxe não é para quem quer, é para quem gosta." Existem normas, exemplifica: "Os caloiros não respondem aos doutores, não os podem olhar nos olhos. Não é uma forma de humilhação. É respeito pelo traje." Garantem, no entanto, que não excluem ninguém. "Até podem ir só ver os outros. Mas, sem experienciar, não podem dizer que não presta."."A minha irmã teve uma rotura de ligamentos".João Silva, de 19 anos, estudante do primeiro ano de Engenharia Informática, "nunca quis ser praxado". Enquanto fala com o DN, vê passar um "caloiro" com um pijama rosa às flores, que o faz soltar uma forte gargalhada. "Isto não é para mim. Sou muito esquisito com a roupa", justifica. Decidiu cedo que não iria participar nos rituais académicos. "A minha irmã, que estudou em Lisboa, teve uma rotura de ligamentos no joelho durante a praxe, porque abusaram um pouco nos agachamentos", conta. .Apesar da lesão, a irmã até o aconselhou a aceitar a praxe "porque era bom para a integração". Mas João não quis arriscar. "As notícias influenciam muito a nossa cabeça. O Meco assustou-nos muito. Agora aquele vídeo do estudante em Évora com a cabeça na farinha... São coisas um pouco humilhantes." Além disso, prossegue, "dizem que obrigam os caloiros a beber muito". "E eu não sou nada bom com bebida." Há quem lhe diga que a praxe "não é puxada, mas uma pessoa fica sempre na dúvida". Como defende que "há limites que não devem ser ultrapassados", o estudante prefere integrar-se de outras formas. "Continuo a ter amigos. No meu curso, cerca de metade participa. Confesso que me dou mais com os que não vão, mas tem que ver com as rotinas. Todos se dão bem.".A situação a que João se refere, em Évora, foi uma alegada praxe abusiva denunciada pelo Bloco de Esquerda (BE) neste ano. Ao DN, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior avança que a Direção-Geral do Ensino Superior (DGES) recebeu cinco denúncias neste ano, dez no ano letivo passado e 18 em 2016-1017..Numa resposta enviada por e-mail, o gabinete do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior lembra que Manuel Heitor "repudia as imagens degradantes que as praxes académicas transmitem à sociedade e considera que a integração dos novos estudantes deve ocorrer de forma positiva, em moldes que apresentem aos novos estudantes as vantagens da formação superior"..No portal Exarp, lê-se na resposta, "encontram-se listadas as mais de 200 atividades organizadas desde o início deste movimento, número demonstrativo da continua preocupação de toda a sociedade, desde associações e movimentos estudantis, passando por entidades ligadas ao desporto, cultura e ciência, até à participação ativa de cidadãos, no estímulo à liberdade e emancipação dos jovens e na sua melhor integração no ensino superior".."Ainda ontem vi uma trupe".Na passagem pela república Rás-Teparta, em Coimbra, encontrámos Diogo Carvalho, de 25 anos, estudante de Filosofia e um dos fundadores do Cria'ctividade, o movimento que nasceu em 2014 "como uma alternativa à praxe, destinado a toda a comunidade". O objetivo, explica, era "ajudar os alunos a integrarem-se, sem hierarquias. Todos são iguais, independentemente do número de matrículas". Organizam workshops, conversas, concertos, jogos, entre outras atividades..Para Diogo, a praxe "tem conotação machista, preconceituosa, homofóbica, misógina", pelo que o Cria'ctividade "procura ser uma plataforma onde isso não existe". "Estamos no século XXI", frisa o estudante, lamentando ter visto uma trupe na noite anterior. "Iam a subir o Quebra-Costas. Continuam a dar com a moca nas unhas e a rapar os cabelos", critica.