Eleições catalãs. Rostos novos, as mesmas divisões e a pandemia à mistura
A dias das eleições autonómicas catalãs, os quatro partidos independentistas comprometeram-se a não pactuar com os socialistas a formação de um governo. Com esse gesto, confirmaram o impacto que a entrada em cena do candidato Salvador Illa teve (passando rapidamente para primeiro nas sondagens) e transformaram o escrutínio deste domingo, marcado também pela pandemia de covid-19, num plebiscito ao ex-ministro da Saúde espanhol: ou Illa ou os independentistas passou a ser o lema do Partido Socialista Catalão (PSC).
O fosso entre independentistas e constitucionalistas tem vindo a cavar-se há mais de uma década, atingindo o pico em 2017, quando os primeiros organizaram a 1 de outubro um referendo que não foi reconhecido pelo governo espanhol. Este suspendeu então a autonomia e convocou novas eleições para dezembro, nas quais o bloco independentista, cujos líderes foram entretanto detidos e condenados ou partiram para o exílio, repetiu a maioria para formar governo - apesar de a vitória na noite eleitoral ter sido dos Ciudadanos.
Agora, pouco mais de três anos depois, os rostos podem ser diferentes - nenhum dos nove cabeças de lista já tinha estado nessa posição -, mas o fosso continua e os eleitores não devem cruzá-lo, mantendo a mesma posição de força entre os dois campos. "As duas trincheiras continuam firmes, com algumas mudanças internas nas suas fileiras", escreveu o subdiretor do jornal La Vanguardia, Enric Sierra, numa das suas análises. Ou seja, os eleitores alteram o seu voto entre os partidos dentro desses campos, cada vez mais antagónicos.
As sondagens têm dado um empate técnico a três: o socialista Salvador Illa, que deixou o ministério da Saúde de Espanha e o combate à pandemia; a ex-conselheira para a área da Cultura e atual deputada no Congresso espanhol, Laura Borràs, do Junts per Catalunya (JxCat) do exilado Carles Puigdemont; e o atual presidente interino da Generalitat, Pere Aragonés, da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), que enquanto vice-presidente assumiu o cargo após a condenação do sócio do governo, Quim Torra, por desobediência.
A balança pende para a vitória do socialista, mas uma maior percentagem de votos pode não traduzir-se numa maior representação no Parlamento catalão, visto que Illa deverá sair-se bem na região de Barcelona, onde são precisos mais votos para eleger um deputado do que noutras zonas. Além disso, como o Ciudadanos aprendeu em 2017, nem a vitória significa que consiga formar governo.
Os socialistas devem crescer precisamente às custas do Ciudadanos, que tal como a nível nacional deverá sofrer um desaire, sendo que a extrema-direita do Vox deverá estrear-se em força no Parlamento catalão, à frente do Partido Popular. Mesmo que os partidos não independentistas alcançassem uma maioria, a presença do Vox tornaria em princípio impossível qualquer aliança.
Do lado independentista, a luta é por saber quem fica à frente, sendo que o JxCat tem vindo a ganhar terreno e parece agora na dianteira. Nesse cenário, e diante das divisões que há no bloco que não é homogéneo, que tem partidos desde o centro-direita até à extrema-esquerda (a Candidatura de Unidade Popular), havia quem apostasse na rutura do bloco e no regresso à velha dicotomia direita e esquerda, com a ERC a aceitar entrar num acordo de governo com os socialistas e com a marca do Podemos na Catalunha, o En Comú Podem.
"Toda a política catalã está sujeita a estas duas clivagens: a ideológica, em que os partidos que se organizam da esquerda à direita como em qualquer sistema democrático, e a identitária ou nacional", disse ao DN o professor de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), Filipe Vasconcelos Romão. "Se olharmos para o programa do ponto de vista ideológico, da organização económica e social, a ERC é muito próxima dos socialistas catalães. Mas a questão da identidade nacional dificulta um entendimento, porque apesar de estarmos a viver em tempos de pandemia e crise económica a questão da identidade nacional continua a centrar a campanha. E há uma grande dificuldade num governo que pudesse agrupar as forças de esquerda", acrescentou, lembrando que é mais do que certa uma maioria de esquerda no Parlamento catalão.
Mas o pacto assinado pelos quatro partidos independentistas - JxCat, ERC, CUP e o Partido Democrático Catalão (PDeCat) - parece deixar de fora essa hipótese. Apesar de Filipe Vasconcelos Romão dizer que ainda não é um cenário a descartar. "Os políticos, se as circunstâncias o permitirem, encontram sempre uma válvula de escape para contrariar essas declarações solenes, seja com outro candidato socialista ou outro candidato republicano", referiu.
O professor lembrou ainda que uma maioria independentista não é sinónimo de acordo automático, porque aí entra em cena a dimensão ideológica. "Em 2015, a CUP bloqueou a candidatura de Artur Mas a presidente da Generalitat, levando ao lançamento de Puigdemont". Em último caso, existe até a hipótese de celebrar outras eleições em função dos vários vetos entre as formações partidárias e os sistemas de bloqueios entre elas.
"O mais fácil será a repetição do resultado das últimas eleições, com o bloco nacionalista a ter a maioria, mas o problema neste momento é perceber se os catalães estão ou não cansados de ver a sua agenda política bloqueada por um tema, diante de uma pandemia e de uma crise económica sem precedentes", afirmou o professor. "Não vivemos um mundo em que se possa eternamente perpetuar a questão d independência", referiu Vasconcelos Romão, lembrando que os independentistas nunca conseguiram chegar aos 50% dos votos apesar de terem maioria de deputados.
A abstenção será outro fator a ter em conta, com as eleições em plena pandemia (chegaram a ser adiadas, mas o tribunal rejeitou essa hipótese) - em 2017, a participação foi recorde, de quase 80%. Tradicionalmente os independentistas são mais ativos, mas grande parte do apoio independentista está entre os eleitores mais velhos que podem também optar por não ir votar. "Se houver uma subida clara da abstenção e mesmo assim não se ultrapassar os 50% mais 1, mas já era razão suficiente para tentar mudar um pouco o chip da política catalã", defende o professor.