Elegia e elogio da mão esquerda

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Quando nos falta a mão esquerda, imobilizada por um osso partido, medimos bem toda a falta que nos faz essa mão maldita e malvista (sinistra em italiano), apanágio dos canhotos e honra dos ambidestros, que fica sempre, sempre do lado do coração.

A esquerda, na verdade, faz cada vez mais falta ao mundo. Escrevo hoje com uma solitária mão direita e faz-me falta a força solidária e insubmissa que a esquerda trouxe à nossa vida humana sobre a terra. Esse cântico incessante, esse apelo à emancipação não pode falhar-nos hoje, que nunca nos faltou no passado.

Um grande pianista austríaco, que perdera na guerra a sua mão direita, viu multiplicarem-se as ofertas de obras para a mão esquerda, que os compositores da época insistiam em propor-lhe. Paul Wittgenstein, assim se chamava o pianista, pôde assim experimentar na música o apogeu e a glória da mão esquerda, demasiadas vezes abafada ou diminuída por uma mão direita arrogante e dominadora.

Dí qualcosa di sinistra, gritava Nanni Moretti, num seu filme, ao então líder da esquerda italiana, D"Alema. O grave não é continuarmos a ter razão nesse grito, o grave é termos desistido de gritar.

Mas o grito pode vir sugerido no Concerto para a mão esquerda de Ravel ou no murmúrio que em surdina recita as nossas desilusões. O descontentamento é como essa brasa escondida de um fogo passado que pode, sem nos prevenir, incendiar o mundo.

Pego, com a minha mão válida, no novo livro de Martin Wolf The Crisis of Democratic Capitalism e, mesmo sem a ajuda da mão esquerda, entendo aquilo que os mais lúcidos defensores da economia de mercado compreenderam já, mas que os nossos liberais, imobilizados desde os anos 80 entre Hayek e Friedman, ainda não atingiram : o conflito crescente entre uma economia liberal, que hoje só traz progresso financeiro a uma estreita minoria, e uma ordem política assente na democracia, que naturalmente reflete o descontentamento dos que são excluídos dos benefícios de tal economia.

Com a mão esquerda tolhida, não alcanço a bibliografia com que tentaria alicerçar esta minha ideia, mas deixo-a aqui, nos limites físicos das minhas possibilidades de expressão. Pode ser que tenha eco...

Foi interessante, nestes dias de mão esquerda enfaixada, assistir no Parlamento à passagem de um folhetim sobre corridas atrás de um computador para uma discussão política a sério, após o regresso de um protagonista essencial, o que nos veio lembrar que a política como quadro de opções concretas não se perdeu por dentro de nenhum computador e pode ainda ser motivo de debates e de controvérsias com sentido.

Os nossos limites estão (também) nos nossos ossos e nas nossas mãos. Estendo (desigualmente) as minhas mãos numa saudação fraterna a quem teve até aqui a paciência de me ler. Gostaria de ir mais além, sair dos limites da minha subjetividade, que vejo bem agora como começa e acaba no meu corpo. Mas, mesmo através destas memórias de egotismo, espero bem que me seja possível, como foi a Stendhal, dizer alguma coisa que faça sentido ao leitor.

Diplomata e escritor

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