Eis que chega a mais patusca teoria da irresponsabilidade dos colunistas
Começo pela punch-line, que é como quem diz, pela conclusão, pelo soco no estômago: "Tenho todo o direito de presumir que Sócrates é culpado daquilo que o acusam - pela simples razão de que as regras do espaço público não são as regras de um tribunal."
A teoria é de João Miguel Tavares, expressa na quinta-feira no Público, desenvolvendo uma argumentação quase entusiasmante que conclui pelo poder dos colunistas de jornal dizerem tudo o que quiserem. Ficaria dececionado e, mais do que isso, preocupado pelo atropelamento dos direitos dos leitores, se tal doutrina fizesse escola neste jornal.
No seu artigo de opinião "A presumível inocência de José Sócrates", João Miguel Tavares, com talento, constrói uma argumentação comparável a um edifício assombroso de Antoni Gaudí - mas em que o genial arquiteto se tivesse esquecido de traçar os alicerces e conceber escadarias entre os andares.
A tese é sedutora e vai buscar sustento em raízes populares: João Miguel Tavares admite que os gatos têm sete vidas, pelo que se dispõe a aceitar sete presunções de inocência a José Sócrates. Enumera, em seguida, as vezes em que o ex-primeiro-ministro já foi presumido inocente e assim legitima-se a si próprio presumi-lo culpado desta vez.
Outro argumentador menos talentoso, mas mais precavido, ficar-se-ia por um "tantas vezes vai o cântaro à fonte que lá deixa uma asa", evitando numerar as idas e vindas. Sempre seria mais universal, porque o argumento das sete vidas de um gato não faz sentido para um britânico, que as conta até nove...
João Miguel Tavares diz respeitar a presunção judicial de inocência e acha muito bem que assim seja, mas entende que ele não tem de obedecer às mesmas regras, porque há outras regras pelas quais se rege, que são as do espaço público.
Já lá vamos ao espaço público e às suas regras, mas convinha esclarecer, de imediato, uma coisa a João Miguel Tavares: o sistema judicial português e a prática, voluntária ou submissa, dos seus agentes - nunca vi nenhum denunciá-lo em público - nada têm que ver com a presunção de inocência. É apenas uma formalidade da boca para fora. No tempo da prisão preventiva, o preso está junto com condenados definitivos e tem de obedecer às regras da prisão: acorda à hora que lhe mandarem, tem de fazer a cama e limpar a cela, não raro comer o que sai do caldeirão prisional, sair para o pátio à hora determinada, enfim toda uma série de imposições, leia-se castigos, para quem é, até ver, inocente. Presunção de inocência? Vou ali e já volto.
Em tribunal, o arguido - que por acaso se senta no banco dos réus e que é mesmo banco, enquanto todos os outros na sala têm respaldo para as costas - fala de pé quando os restantes falam sentados, está sozinho quando até o autor da queixa tem direito a estar num lugar mais elevado, ao lado do advogado de acusação. E isto quando não tem a atacá-lo, em dueto, o acusador privado e o Ministério Público, ainda mais acima, ao lado do juiz - que batota! - com a bandeira nacional por detrás de si! Presunção de inocência ou selvajaria feudal? Uma magistrada professora do Centro de Estudos Judiciais explicou-me que as pessoas estão nessa condição humilhante porque "alguma coisa devem ter feito". Ou seja, já vão para a sala de audiências meio condenadas. Eis a presunção da inocência na máquina trituradora do obscurantismo: a madama juíza em nada se distinguiu da grosseria das enfermeiras boçais que resmoneiam para as parturientes que gritam as dores, "Não gritaste assim quando o estavas a fazer!"
Os tribunais portugueses e as suas práticas incontestadas não podem estar à mesa de uma discussão civilizada: são uma reminiscência medieval, com a cumplicidade de jurisconsultos, doutrinadores, catedráticos e todos os que cevam e retouçam nesse lamaçal de indignidade que é uma das maiores vergonhas nacionais.
Voltemos à conversa de pessoas de bem e com escrúpulos. João Miguel Tavares diz que se sente legitimado a opinar porque está no espaço público. Que espaço público? A querela de taverna ou a vozearia de bazar é espaço público? Decerto que não. É a Öffentlichkeit de Jürgen Habermas, traduzido franco-portuguesmente para um equívoco "espaço público", quando melhor fizeram os britânicos a chamar-lhe "esfera pública"?
A regra desse "espaço público" é não ter regras, é o posso, quero e mando vir? Até o ultraliberal Karl Popper teve de arrepiar caminho e defender - com mais de vinte anos de atraso em relação aos jornalistas portugueses - a necessidade de um código deontológico jurado por aqueles que influenciam a opinião pública. Não é um problema de tribunais - é de preservação da democracia.
"Precisamos da liberdade", escreveu Karl Popper, "para impedir o Estado de abusar do seu poder, e precisamos do Estado para impedir a liberdade de provocar abusos." E João Miguel Tavares quer a liberdade para dar gás e ânimo a esse abuso atávico e indiscutido que é a prática dos tribunais e do seu sistema?
Diz João Miguel Tavares que o seu tempo e o dos tribunais é diferente e que não pode ser obrigado a pronunciar-se sobre "a honorabilidade de José Sócrates daqui a sete ou oito anos, quando todos os recursos tivessem sido esgotados e a sua sentença transitado em julgado". Tocou na palavra certa: "honorabilidade".
É disso que se trata: estamos a falar da honra de alguém e todos se presumem honrados até prova em contrário. Esperar sete ou oito anos? Quem é que pede isso a João Miguel Tavares? Não sue sangue o colunista por uma coisa destas! É livre de elidir a presunção de inocência de José Sócrates ainda hoje, não precisa de esperar pelos tribunais: basta que faça esta coisa simples e devida - a prova. Largue as pantufas e o robe de comentador e calce os sapatos usados de jornalista número 4158, creio eu, registado na Comissão da Carteira, utilize todas as prerrogativas legais de jornalista de investigação para abrir as portas perras da burocracia e conclua, preto no branco, que fulano é culpado. É fácil e está nas regras do "espaço público" e da liberdade, a tal que termina quando começa a liberdade de outro: se sabe que alguém meteu a mão no pote, como disse alguém, e o fez ilegitimamente, escreva e esclareça os seus leitores, entre os quais me incluo, sempre com vontade de aprender com os talentosos. Tem todo o direito de demolir a honorabilidade de outrem se fundamentar; mas não pode agredi-la gratuitamente ou ceifando vidas aos gatos imaginários.
Agora, João Miguel Tavares tem de perceber que dois a atacar um só - e manietado - não é galhardo nem digno: dos tribunais, não espero um tratamento de respeito pelos que lhes caem nas mãos - e têm a lei pelo seu lado; mas de um colunista civilizado e com wit como João Miguel Tavares posso exigir mais e melhor do que sairia de algozes e esbirros.
Apesar de afirmar que as suas regras são diferentes das dos tribunais, João Miguel Tavares teve a artimanha de rábula do cambão, não fosse o diabo tecê-las e os tribunais reagirem com ferocidade contra quem tão estrenuamente lhes vem defendendo os procedimentos: limitou-se a afirmar o princípio de que "tem todo o direito a presumir que fulano é culpado" - mas não passou à prática de afirmar de peito aberto que é mesmo culpado.
Ficou-se pela água chilra, quando prometia aguarrás. Assim fenece a tonitruante e patusca teoria da irresponsabilidade dos colunistas. Pudera!