Eduardo Oliveira e Sousa: "Nos casos de escravatura, os agricultores muitas vezes são vítimas, não responsáveis"

O presidente da CAP fala das dificuldades que vive o setor que representa, com ajudas ainda por chegar. Aponta a ideologia como barreira ao crescimento da agricultura e lamenta a relação difícil com a ministra e uma reforma verde que não colheu experiência de quem está no terreno. Na ideia de as Direções Regionais passarem para as CCDR, vê sinais do desmantelamento do ministério.
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Não foi suave o arranque da legislatura. As relações entre a Confederação dos Agricultores Portugueses (CAP) e a ministra da Agricultura azedaram ainda durante a campanha eleitoral. A CAP foi acusada de ser oposição e a ministra sugeriu, mais tarde, que os agricultores se fossem queixar àqueles a quem deram o voto. Em que ponto da relação estão Ministério e agricultores, numa altura em que são descobertos casos de escravatura entre trabalhadores migrantes contratados por grandes explorações, fundos europeus por aplicar e uma reforma institucional que não é pacífica? São temas desta conversa com Eduardo Oliveira e Sousa, presidente da CAP.

Vamos primeiro ao tema que é o elefante na sala. As Direções Regionais da Agricultura tinham morte anunciada, os serviços passariam para as Comissões de Desenvolvimento Regional (CCDR). A CAP insurgiu-se contra essa possibilidade. Depois o governo veio dar uma espécie de dito por não dito... Em que ponto é que estamos?

Lendo a entrevista que a senhora ministra deu recentemente ao Diário de Notícias, quase que fica a pergunta: então se fica tudo na mesma, segundo a resposta que ela deu, para quê esta remodelação? A única diferença que vejo na resposta que a senhora ministra deu é que o diretor regional desce de categoria. Portanto, deixa de ser um diretor, para passar a ser um subdiretor. O resto fica tudo na mesma. Então, se é assim, tem de haver outra razão. E essa outra razão é a pergunta que nós fazemos também à senhora ministra, mas também ao governo, porque foi uma decisão tomada em Conselho de Ministros. Tem de haver aqui uma razão mais abrangente para haver uma medida desta natureza...

Qual é a razão, na sua opinião?

Na minha opinião há vontade de entrar por um processo de regionalização, mais até do que de descentralização, que não foi devidamente escrutinado. A descentralização é um processo com o qual estamos de acordo em termos concetuais e, de alguma forma, as Direções Regionais de Agricultura corporizam uma certa descentralização. Uma regionalização tem obrigatoriamente de passar por uma consulta ao povo português, que não foi feita. E, por isso, há aqui qualquer mecanismo, qualquer orientação superior que justifica ser devidamente esclarecida.

Mas como tem sido hábito nos últimos tempos as decisões serem tomadas sem haver um prévio acordo ou discussão, algum consenso, alguma partilha de estratégias que o governo pretenda implementar, neste caso particular em que a agricultura está envolvida, gostaríamos que o assunto tivesse sido primeiro discutido connosco e depois, mesmo que eventualmente as nossas opiniões se mantenham divergentes das decisões que sejam para ser tomadas, haver então uma decisão.

Isso seria aceite?

Não somos contra isso. A democracia é feita de opções, de maiorias, de decisões. Agora, aquela sensação de que ficámos fora da discussão pareceu-nos completamente desajustada numa matéria tão sensível como é a agricultura, que é a única área da economia que está sujeita a uma política europeia, que tem mecanismos complicadíssimos de serem alvo de gestão e de medidas de controlo, que têm de ser feitos por pessoas que são especializadas nessas áreas. E nós não acreditamos de maneira nenhuma que vão ficar sujeitas a uma hierarquia diferente daquela que é a do próprio Ministério da Agricultura. E é essa hierarquia que eu ponho em causa.

Já vamos a esse assunto. Ou melhor, retomar esse assunto da figura do diretor regional - que, diz a ministra, vai passar a ter outro nome e a ser um elemento que participa, e estou a citar, "na Comissão de Coordenação sendo um vice-presidente, um vogal, outra figura qualquer que o governo ainda não definiu". Já agora, isto quer dizer o quê?

Estas declarações são indicadoras de alguma coisa que ainda não está bem pensada. "Outra coisa qualquer" é o quê?

É uma espécie de "gato escondido com o rabo de fora" neste processo?

Pode ser uma intenção de dar a entender que tudo vai ficar como está, mas sabemos, até por experiência de outras situações, que não fica tudo como está passado relativamente pouco tempo. Dou um exemplo, para ser pragmático. Um presidente de uma CCDR vai assumir, além da pasta da agricultura, assuntos relacionados com a educação ou com a saúde. Num dia, numa reunião em que está presente o ainda diretor Regional da Agricultura da altura, que tem um problema, um assunto para levar ao conjunto de temas que terão de ser discutidos naquela reunião, e está um problema grave de saúde ou um problema grave de segurança social ou de educação, a agricultura vai ser prioritária nessa análise? Não vai. Isto vai ser uma questão de tempo. O desmantelar do Ministério não é imediato, obviamente, mas consta que já há funcionários a receber perguntas sobre mobilidade, etc.

Ou seja, há qualquer coisa que precisa de ser muito bem explicada. E, na nossa perspetiva, se há setor da economia que tem de ter representatividade no território é o da agricultura, porque está relacionado com uma prática que é feita no território, que é preciso descentralizar. É preciso intensificar o relacionamento entre o governo, através das direções regionais, e as organizações de agricultores que estão no terreno e que fazem a ponte direta para os agricultores, inclusivamente com outras áreas governativas, que hoje implicam assuntos com a agricultura - como seja o Ministério do Ambiente, através das diferentes competências que agora assumiu e que também são agrícolas. E por isso ficámos muito pouco confortáveis com esta notícia, principalmente porque não conhecemos a minúcia, não conhecemos os objetivos de longo prazo que se pretende atingir com esta decisão.

Posso deduzir das suas palavras que está a falar de uma espécie de regionalização encapotada?

Assumo que sim, que será qualquer coisa desse género, que poderá estar naquilo que desconhecemos e que não aceitamos que seja possível levar por diante sem haver uma devida discussão.

Como estão as relações da CAP com o Ministério da Agricultura, ou melhor, com a ministra, do ponto de vista institucional, depois da guerra que aqui já referimos?

A palavra "guerra", que utilizou, se existir, não é nossa. De maneira nenhuma. Aliás, ainda bem que traz esse assunto, porque dá a sensação de que ficou esquecido. Lembra-se com certeza de que a própria senhora ministra terá respondido às perguntas que foram insistentemente colocadas, não apenas por jornalistas, mas até por membros de outros partidos políticos. E disse: "Eu vou ao Parlamento fazer um esclarecimento cabal da razão porque disse o que disse". Que eu saiba, ela não foi ao Parlamento fazer essa explicação. E, portanto, esse assunto ainda carece de ser explicado porque foi uma verdadeira ofensa, quase, não só aos agricultores, mas até ao próprio país, dando a entender que há uma relação direta entre quem vota ou quem não vota no PS. E creio que até o PS está incomodado com essa situação. Nunca houve da nossa parte intenção de fazer um relacionamento direto com o PS. Tinha que ver, sim, com uma coligação que estava na iminência de acontecer com um partido que, esse sim, pretende destruir a agricultura da forma como nós a vemos.

Foi contra isso que falou?

E foi isso que não foi entendido. E por isso tem de haver outra razão para, depois de esse assunto ter sido esclarecido, explicar que a senhora ministra se tenha lembrado de fazer, naquele dia, aquela observação perante um assunto que tinha que ver com ajudas à situação desastrosa, dramática, trágica que o setor estava a viver naquele momento em relação aos problemas da seca. Passados todos estes meses, as ajudas da seca ainda não chegaram. Têm mais de um ano de prometidas, mas não sabemos quando chegarão. Estas são as nossas incongruências no relacionamento que temos com a senhora ministra, porque nunca conseguimos obter uma resposta que seja: "É assim, vai ser assim".

Foi o que aconteceu com os pagamentos da antecipação das ajudas, que ela começou por prometer que iam ser feitos em abril, depois passou para maio, depois junho, e só em julho é que houve, de facto, algum pagamento. Mas não são medidas extraordinárias. É uma antecipação de ajudas a que os agricultores tinham direito. E, mesmo assim, não receberam todos, porque a burocracia perturba sempre estes processos. As ajudas extraordinárias da seca, e algumas da guerra, ainda não chegaram, nem sabemos quando chegarão. Os espanhóis receberam-nas no verão... Estas diferenças, fazem com que não seja fácil entendermo-nos nestas minudências gravíssimas. São minudências porque é uma palavra que desprestigia de alguma maneira a ambiguidade dos assuntos. Em termos institucionais não temos problemas nenhuns com o Ministério da Agricultura. As nossas estruturas organizativas, o nosso corpo técnico, que dialoga com a estrutura técnica do Ministério da Agricultura, mantém este diálogo.

Dialoga com a ministra?

Dialoga no institucional. No essencial não dialoga. Não dialogou no PEPAC, não dialogou nestas questões relacionadas com este procedimento de que falámos há pouco, daquilo a que chamamos o desmantelamento do Ministério da Agricultura... Porquê? Porque nós temos visão sobre o futuro para a agricultura e, na nossa perspetiva, não existe essa visão na cabeça do Ministério.

Por falar em PEPAC, precisamente, a Ministra da Agricultura anunciou no DN 6,7 mil milhões para a agricultura. Era o que a CAP esperava?

Esse valor do PEPAC está inteiramente definido em termos de Política Agrícola Comum (PAC), faz parte do orçamento da União Europeia (UE).

A ministra disse também que é um programa muito ambicioso. É ambicioso porque é difícil de executar, ou é realmente ambicioso para a agricultura?

São as tais palavras que a senhora ministra utiliza e que ela própria tem de explicar o que quer dizer com isso. A senhora ministra várias vezes refere que está preocupada ou que quer com este PEPAC, um incremento para a agricultura, que os agricultores vão ficar melhor, que a agricultura vai crescer... Há aqui uma espécie de sonho permanentemente a ser anunciado. E nós estamos muito mais no real. Apetece-me quase dizer, como dizem os brasileiros: "Caia na real". Não tenho nada contra a senhora ministra, como possam imaginar, simpatizo com a senhora como pessoa, mas quando ela entra no discurso sobre como é que ela vê a agricultura, creio que entra numa espécie de um sonho. E esse sonho tem uma realidade que nós vemos de outra maneira porque estamos no terreno, porque a sentimos, e porque quando a confrontamos com essa realidade, ela fica um pouco sem nos dar respostas objetivas, como seja, por exemplo, nos valores que estão por pagar aos agricultores no âmbito do Programa de Desenvolvimento Rural (PDR), como seja na montagem da arquitetura verde, que ela orquestrou conjuntamente com as suas estruturas técnicas - e com as quais nós não estamos minimamente de acordo.

Deixe-me pegar nesse tema da arquitetura verde, que o PEPAC também prevê em dois pilares. Há um deles que tem uma fatia à qual só terão acesso os agricultores, e que é 25% do valor atribuído, mas só se o agricultor cumprir um conjunto de regras sustentáveis. Este é uma novidade no Programa, pelo menos no primeiro eixo de atuação. Estas regras de produção sustentável vão ser realistas? É possível aplicá-las na agricultura, mantendo a sustentabilidade e o negócio? Ou são regras tão difíceis de cumprir que os agricultores não terão acesso a estes fundos?

Essa é uma dúvida que temos neste momento e quase uma reivindicação. Já a manifestámos à senhora ministra, dizendo-lhe, preto no branco, que achamos que no primeiro ano de implementação deste PEPAC devem ser logo criadas e deve ser feito um pedido à Comissão para o alterar, porque ele foi feito fora de uma negociação, de uma concertação de ideias com o setor - seja com a CAP, seja com outras organizações que, manifestamente, ficaram preteridas na arquitetura que depois veio a ser montada, onde entram estes 25%. O que são estes 25%? Na política agrícola que vigorou até ao final deste ano, os agricultores estavam obrigados - aliás, era volun- tário, mas eram 30% e passou para 25%; estava associado àquilo que na política anterior se denominava o greening. E o greening tinha exatamente esses objetivos: introduzir medidas de sustentabilidade ambiental na forma como os agricultores praticam a agricultura. E o greening não atingiu os objetivos pretendidos porque as alterações foram pouco evidentes. De uma maneira geral, os agricultores, cumprindo meia dúzia de regras, tinham acesso a esses 30% que, no fundo, não é mais do que o conjunto dos 100% a que todos os agricultores ambicionam. O modelo é para a Europa toda, e agora também será, só que desta vez a política agrícola teve a possibilidade de ser feita um pouco à medida de cada país. Por isso, ficámos satisfeitos com esta medida.

E o que se passou?

Quando começámos a querer propor as nossas visões sobre as medidas, elas não foram minimamente aceites. Foi por essa razão que, a certa altura, produzimos um comunicado a dizer: "Já esgotámos a nossa capacidade de persuasão para que o Ministério nos oiça, vamos passar a entregar estes assuntos ao senhor primeiro-ministro diretamente, porque isto é demasiado grave".
O senhor primeiro-ministro conduziu estes assuntos de volta ao Ministério da Agricultura, e o resultado foi um PEPAC aprovado em Bruxelas, do qual fomos informados através de uma reunião com um simples PowerPoint e meia dúzia de quadros. E lá vêm os tais 25% que são os eco-regimes. E os eco-regimes são um pouco confusos.

Porquê?

A política agrícola tem dois pilares. Um é mais dedicado ao investimento e às medidas ambientais - e dentro dessas medidas agroambientais, pelo menos duas saltam do segundo pilar e passam para o primeiro, construindo parte desses eco-regimes, onde está a produção integrada e a produção biológica, que são modelos que passam a ter a característica anual, que, na nossa perspetiva, estavam muito melhor na situação anterior, em que tinham objetivos plurianuais.

Portanto, um agricultor que se candidatasse para fazer agricultura biológica ou produção integrada, que são situações com alguma semelhança no âmbito da proteção ambiental e do modo de produzir, que tem de ter consequências ao fim de uns anos, via as ajudas condicionadas a isso. E agora passaram para um eco-regime. Portanto, um agricultor pode optar por fazer este ano e não fazer no próximo. Ora, quando se mexe em assuntos relacionados com a natureza, com práticas ambientais e práticas de sustentabilidade, é sempre bom percebermos que no campo, na natureza, as coisas não são imediatas. A agricultura não é uma fábrica de pregos. Ligar e desligar, na agricultura, é uma coisa; ligar e desligar, numa empresa de outro tipo, é outra coisa. E, por isso, estes eco-regimes, que constituem um pacote global de 25%, são repartidos em função de determinados programas, e uns são compatíveis, outros não.

Os regulamentos ainda não são conhecidos. Estamos a 15 dias, ou a um mês, de entrarmos na execução do programa e ainda não existe a regulamentação ou a legislação correspondente, nem esta compatibilidade entre programas. E isto é, neste momento, já uma certa angústia que já está instalada no território, porque há algumas áreas da economia agrícola que vão sofrer esses impactos, nomeadamente as alterações dos valores - a pecuária extensiva, a agricultura biológica e a produção integrada. Há medidas, que agora não tenho de cor, relacionadas com a aplicação de fertilizantes orgânicos... Por que é que é possível as medidas do bem-estar animal estarem associadas à produção de vacas leiteiras, mas não à produção de vacas que não são leiteiras? Há medidas que não percebemos e que gostávamos que fossem revistas.

É importante o que está a dizer, mas é um tema bastante denso para os nossos leitores que não dominam esses termos técnicos agrícolas. Queria fazer-lhe uma pergunta clara para perceber a sua opinião. Temos, ou podemos vir a ter, em Portugal condições para nos autossatisfazermos do ponto de vista alimentar, para falar de cereais, frutas, legumes, carne, ovos. Temos ou teríamos essa capacidade?

Temos de ver o problema do auto- abastecimento de duas maneiras: em valor ou em produto. Em valor, há produtos em que somos excedentários e exportamos - algumas frutas, hortícolas, produtos de caráter florestal, que também fazem parte da agricultura, por muito que se queira dar a entender que não. Em espécies, somos em alguns, mas nunca seremos noutros, como por exemplo nos cereais. Não temos características edafoclimáticas, ou seja, nem solo, nem clima propício à produção de cereais, que pudessem fazer com que Portugal fosse autossuficiente. Era preciso retirar praticamente tudo o resto para podermos produzir cereais para nós próprios. Temos de ter sempre pontos comerciais com o exterior para nos abastecermos de cereais. O que não significa que não possamos produzir alguma coisa.

Quando pensamos em cereais, a nossa imaginação vai imediatamente para o pão e para o trigo, mas há mais cereais, como o milho, que produzimos, ou o arroz, em que somos praticamente autossuficientes, o que não quer dizer que sejamos excedentários - mas até exportamos alguma coisa, nomeadamente para a China, que quer arroz produzido em Portugal. Tal como são os frutos vermelhos, outros produtos de alta categoria (para nichos) em que Portugal marca pontos no exterior. Em valor, temos condições para ser equilibrados, em produto há alguns em que não somos capazes de ser.

Falou em valor acrescentado. A agricultura, pelos dados do Ministério, representa 5% do valor acrescentado bruto. Mas quando olhamos para os valores do INE, este valor tem vindo a cair desde 2015. Como é que se consegue inverter esta situação, uma vez que a ministra diz que o setor pode ir mais longe. Pode? E como fazê-lo?

Dividiria esta questão em duas. Uma das razões por que os valores caem desde 2015 tem que ver com a reforma da floresta que foi iniciada nesse ano. Lembram-se da célebre expressão "a maior reforma da floresta desde D. Dinis"? E na nossa opinião, e à medida que o tempo passa, aquilo que está a passar-se no setor florestal em termos económicos é um desastre. A palavra desastre é dura, mas é aquilo que refletem os números apresentados pelo INE. Não há indicador nenhum, associado à floresta, que não tenha uma curva decrescente e que se acentuou, a partir de 2019, quando o Ministério da Agricultura ficou sem a tutela do setor florestal. Esses indicadores, seja na riqueza produzida pela silvicultura do país seja, pelos valores dos produtos florestais, vem a decrescer desde 2015, acentuando-se a partir de 2019. O capital florestal do país está a níveis mínimos históricos, o investimento na reposição da floresta não existe, não há incentivos nem fiscais, nem outros, ao investimento ou à reflorestação. Por exemplo, a proibição da plantação de eucaliptos não se tem revelado uma mais-valia para o país - pelo contrário. É uma medida que devia já estar a ser reequacionada. A economia é uma palavra que saiu muito do léxico da floresta, e é uma das razões pelas quais o valor acrescentado bruto do país vem a decrescer.

Na parte agrícola, propriamente dita, também tem havido altos e baixos. Há setores com problemas graves desde o início da pandemia, mas a resiliência do setor e as ajudas que recebe da Política Agrícola Comum permitiram ultrapassar os desafios da pandemia, e agora manifesta novamente vontade de crescer. E estes crescimentos têm que ver mais com o setor empresarial do que com a agricultura - é uma ambiguidade. A senhora ministra admite, de facto, que o setor progride, mas não acarinha esse crescimento, acarinha outro tipo de crescimento, que é o dos agricultores mais pequenos e com menos recursos, mas há travões. Um agricultor mais pequeno que queira progredir, a partir de um determinado momento tem um impedimento que é ser considerado tão pequeno - e deixa de receber o apoio, nomeadamente de se organizar em associações de produtores. Um modelo que devia ser muito acarinhado para dar força negocial ao setor agrícola em mercados exteriores.

E que papel é que tem a CAP nisto tudo? Muitos acreditam que as grandes organizações ou federações tratam mais dos grandes do que dos pequenos. O que é que a CAP faz para enquadrar, ajudar, apoiar os pequenos agricultores, que muitas vezes não têm massa crítica, não têm capacidade, sequer, para chegar aos subsídios, aos apoios?

O que a CAP faz é precisamente defendê-los. A grande massa da CAP é constituída por pequenos agricultores ao contrário da perceção que as pessoas têm. As associações que são sócias da CAP é que representam o grosso dos agricultores, e a nossa maioria está, de certa forma, no universo das associações que representa dezenas de milhares de agricultores. Há grandes agricultores em todo o país - não é preciso ter uma grande área, pode ter um grande volume de exportação. E também existe o inverso, agricultores que têm áreas grandes e que são pouco inovadores, estão agarrados a uma estrutura envelhecida... Existe de tudo e, por isso, a nossa função é dinamizar, puxar pelos instrumentos de apoio ao setor, para que todos possam beneficiar deles. Não aceitamos muito bem que tenha de haver limites ao crescimento com a ideia de que uns têm de ser mais apoiados do que outros apenas pelo seu crescimento. Isso entra quase na discussão da ideologia, que é uma situação delicada de lidar e que às vezes se transforma num travão.

O que quer dizer com ideologia?

Ideologia é exatamente dar preferência ao pequenino por ser pequenino.

Não há um incentivo a ganhar escala em Portugal, é isso?

Há pouco incentivo a ganhar escala. Por exemplo, a Bélgica é um país mais pequeno do que Portugal, mas 90% da produção agrícola da Bélgica é comercializada através de organizações de produtores. O que significa que eles têm garra para poderem negociar com as grandes superfícies, com os grandes traders internacionais, etc. Em Portugal são 25% exatamente porque as organizações de produtores têm sido menos bem tratadas neste processo de angariar mais agricultores, de fortalecerem os seus mecanismos, de serem mais ágeis nas burocracias para ultrapassarem os problemas associados a esse crescimento, a terem os seus programas operacionais devidamente financiados e clarificar alguns temas. Há aqui questões que têm de ser esclarecidas, mas queria completar a minha referência à Bélgica, porque uma única organização de produtores, lá, fatura mais do que o conjunto de todas as organizações de produtores portuguesas. Há uma organização de produtores na Bélgica que fatura 400 milhões por ano e em Portugal, a maior, fatura 50/60 milhões. Portanto, não crescemos mais porque existem obstáculos.

Mas esses obstáculos vêm de onde?

Estes obstáculos são burocráticos, organizativos, culturais e ideológicos. Creio que ainda existe aquela ideia de que os agricultores grandes não devem ser apadrinhados, mas é exatamente o contrário. Temos de ter agricultores grandes na sua dinamização, naquilo que produzem para o país e para o mundo, independentemente de poderem estar num patamar de faturação que se afaste daquilo que é considerado o pequeno agricultor. O pequeno agricultor existirá sempre, mas o modelo agrícola não pode estar associado a uma agricultura de pequena escala. Aquela ideia do agricultor que está nos manuais escolares - muito erradamente, porque os agricultores de hoje são diferentes dos de antigamente -, a ideia de que o agricultor é sempre alguém que faz mal aos animais ou que está a envenenar o solo, essa imagem é negativa. E ainda está nos manuais escolares e até no léxico dos professores nas escolas, o que está profundamente errado. E isto é ideologia. Temos de combater isso e tem de haver, do lado da opinião pública, o contrário: confiança nos produtos portugueses, confiança na forma como fazemos agricultura, porque os agricultores são os primeiros interessados a fazer as suas culturas como deve de ser.

Vivemos tempos muito desafiantes, tempos de guerra, a inflação disparou e o custo da energia também. Em maio, acusou o governo de aproveitar a inflação para quase fazer disso um negócio em proveito próprio, e o dinheiro que arrecada não o terá introduzido na economia para minimizar os impactos dos custos de produção. O que é que o governo devia fazer? Libertar mais ajudas, colmatar mais os custos da energia?

Em maio, estávamos no olho do furacão das consequências da escalada da energia. Inclusivamente, houve números que vieram a público relacionados com o acréscimo de colheita de IVA que fizeram disparar os valores que estavam orçamentados. Portanto, havia ali uma folga. O que nós quisemos dizer com isso foi que estávamos perante uma escalada de preços da energia e dos combustíveis que mereceria ter tido um ataque imediato. E esse ataque não foi feito, o que se fez foi muito incipiente. Entre Portugal e Espanha, temos uma diferença que, por vezes, se aproxima dos 50 cêntimos por cada litro de gasóleo. E o gasóleo, por alguma razão, foi colocado no acordo de médio prazo estabelecido com as confederações e com a UGT: é o verdadeiro elemento transversal na agricultura. Todos os agricultores utilizam gasóleo, portanto, se havia local que poderia criar uma ajuda imediata era ao minimizar aquela escalada abrupta do preço do gasóleo. Depois, também temos a questão do preço da energia. Sendo Portugal um país mediterrânico e, ainda por cima, a sofrer a seca que estava a sofrer e sendo um país onde a agricultura está associada ao regadio, precisa de consumir muita energia elétrica. A energia elétrica não se resolve de um dia para o outro com a montagem de painéis fotovoltaicos.

Mas de maio para cá foi feito o que era necessário?

Não, não foi, de todo. Felizmente, a energia agora baixou para valores mais aproximados e estamos numa fase em que se consome pouca energia, mas enquanto não acabar a guerra a energia é uma faca de dois gumes. Porque o setor agrícola tem diferenças em relação aos outros. Há pouco dei o exemplo de uma fábrica de pregos: se esta fábrica tiver um efeito imediato no custo de energia que a obrigue a parar, então o ferro fica ali à espera e pronto. Na agricultura não, uma vez que as sementes estão na terra, já não é possível parar, e se se parar há uma destruição. Portanto, as pessoas não param, e se não param, entram numa escalada de custos que, quando chegar a conta final, pode dar origem a uma falência imediata.

Teme que vão aumentar as falências dos agricultores no próximo ano?

Elas já ocorreram neste ano e continuam a ocorrer. Na área da pecuária, por exemplo, por causa da falta de ajudas atempadas para a seca, e agora na questão da energia, quando as pessoas estão a ser confrontadas com os acertos do final do ano. Portanto, quando chegarem as faturas do fim do ano, em que o tal mecanismo - que é difícil de as pessoas entenderem como funciona -, está a ser carregado para as faturas com valores que têm que ver com consumos feitos durante o verão, e que agora vão transportar os custos da energia para fora de pé, como se costuma dizer, os resultados vão ser desastrosos. Claro que isto terá impacto no próximo ano, haverá agricultores que param, haverá agricultores que ficarão à espera para não correrem os mesmos riscos. Se estas negociações que estão a ocorrer na Europa derem resultados e for previsível que haja limites a introduzir aos custos da energia... Nós próprios propusemos ao ministro do Ambiente que se considerasse a hipótese de trazer para a agricultura a medida que existe para o cidadão urbano, de transformar o seu contrato para o mercado regulado, pelo menos de forma excecional, até que esta perturbação fosse ultrapassada. Caso contrário, pior do que não fazer, é deixar abandonado o território. É melhor uma suspensão do que uma paragem definitiva, mas temo que em alguns casos essas paragens definitivas possam ocorrer.

Na última semana, Portugal foi abalado por um escândalo de trabalhadores migrantes que viviam em condições sub-humanas, alguns em condições de escravatura, em grandes explorações do sul do país. Que se saiba, os donos dessas explorações são associados da CAP?

Utilizou uma expressão que começo por explicar que, muito provavelmente, é exatamente o contrário. Não são as grandes explorações que estão envolvidas neste tráfico. O tráfico de seres humanos é uma coisa abominável e há de ser semelhante ao tráfico de droga feito por organizações que são criminosas. Portanto, isto é uma área que tem que ver com polícia e com o combate ao crime puro e duro. Os agricultores, muitas vezes, são vítimas, não são responsáveis por essas situações e são até surpreendidos muitas vezes por estarem envolvidos sem saberem. Os de cariz mais profissional, aqueles agricultores que têm uma atividade que está relacionada com o mercado internacional, quase que diria que não há nenhum que possa ser encontrado ligado a este tipo de fenómeno.

Então quem são?

São os agricultores menos escrupulosos, porque existem - existem pessoas assim em todos os setores da economia e da sociedade. Mas existem também entre os agricultores, não o vou esconder, porque a CAP não tem a veleidade de poder representar a totalidade dos agricultores. Há muitos agricultores que não são associados de coisa nenhuma, nem da CAP, nem de nenhuma outra organização, e é exatamente aí que ocorrem estas situações. Além das eventuais surpresas, porque pode haver agricultores que, por desconhecimento das regras, se envolvam em situações em que acabam por ser apanhados nessa malha sem saberem. A maior parte desses trabalhadores envolvidos neste tráfico de seres humanos são pessoas que vêm trabalhar angariadas pelos tais traficantes que depois os "oferecem" a pessoas que precisam de uma determinada tarefa feita por pouco tempo. E, portanto, como é por pouco tempo, não vão à minúcia de saber quem são as pessoas, que tipo de empresa é. E são pessoas que não conhecem as regras, porque se conhecessem as regras, os riscos associados são tão grandes, que as pessoas não corriam o risco de fazer contratação com essas empresas. Mas é uma malha muito bem organizada, são empresas que mudam de nome com muita facilidade, os trabalhadores mudam constantemente, há uma complexidade brutal no controlo destas situações. E, precisamente por isto, isto é uma ação de polícia e aqui a Judiciária é a especialista na matéria, porque descobrir e desmantelar estas redes não é propriamente uma tarefa fácil.

Mas não queria falar das redes, queria falar das pessoas que estão nessas explorações . Alguém é responsável por essas explorações. Não há forma de ter mais atenção e perceber de onde vêm aquelas pessoas, mesmo que seja por pouco tempo?

Há e por isso é que disse que os que são verdadeiramente profissionais têm esses cuidados e não correm esses riscos. E há milhares de trabalhadores nessa situação e nenhum deles é irregular. Os outros, os que não são regulares, que são estas centenas que foram descobertos - e acredito que ainda haja mais -, é bom que sejam descobertos, que quem os traz seja punido, assim como quem os utiliza de forma consciente. Porque também acredito que haja mão criminosa na utilização de algumas destas pessoas. Mas a CAP não tem nada que ver com isto - é um assunto totalmente à margem da CAP. Nestas matérias, a CAP está envolvida na parte contrária, ou seja, a ajudar os agricultores a terem acesso a mão-de-obra em que, mesmo que os trabalhadores sejam imigrantes, venham em condições perfeitamente conhecidas.

Estabelecemos recentemente um acordo com Marrocos para um projeto-piloto com 400 trabalhadores que são angariados pelo IEFP de Marrocos, recebem formação lá. O IEFP português recebe-os e coloca-os em colaboração com a CAP e depois são distribuídos por diversos agricultores e vão trocando - ou não, podem ficar sempre com o mesmo agricultor. Também podem estar cá durante X meses e depois voltar para casa, ou estar cá X meses e depois mudar de lugar, mas sempre com conhecimento total, desde que chegam até que vão embora. Quando vêm já têm a viagem paga, o sítio onde vão ficar, têm os direitos sociais que estão associados aos contratos e a garantia de que são devidamente remunerados. Caso assim não aconteça, as empresas agrícolas que os contratam ficam responsáveis pelos seus direitos e pagamento de despesas. Isto é aquilo que pretendemos e também estamos a fazer isto com a Índia através de um acordo estabelecido pelo Estado. Neste caso é mais difícil, porque as instituições que trabalham na Índia são de cariz muito diferente das que trabalham em Portugal. E também temos notícias recentes de haver uma espécie de via verde de trabalhadores dos Países de Língua Oficial Portuguesa que queiram vir trabalhar para Portugal. Este é o nosso foco, é aqui que trabalhamos.

E depois há uma rede marginal que aparece no caminho e traz uma situação como esta que foi descoberta - e ainda bem, porque tem de ser combatida - e vem denegrir o setor. O setor não precisa de ser denegrido, precisa de ser apadrinhado e enaltecido. Portanto, isto é uma ação de polícia, que passa completamente à margem dos interesses dos agricultores, e os próprios têm de perceber que se aparecer uma empresa de que desconfiam minimamente, têm de fazer perguntas. E nós dizemos-lhes quais são essas perguntas que têm de fazer. Se contactarem a CAP nós explicamos, inclusivamente, que ficam responsáveis, penal e socialmente, pelas consequências de utilizar esse tipo de trabalhadores.

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