Edmundo Martinho: "Temos de nos preparar para um embate ainda mais duro" na vida das famílias
Para anos complexos, soluções ambiciosas. Em novembro de 2020, o Governo anunciou a criação de uma comissão que estaria responsável a partir de então de criar um documento onde devem estar objetivos e propostas para combater a pobreza em Portugal nos próximos dez anos.
Chama-se Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, o grupo que a vai criar é coordenado pelo provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), Edmundo Martinho, e o primeiro esboço foi apresentado no passado dia 15 de dezembro ao Governo. O coordenador avança o que, na sua opinião, deveria ser feito a médio e longo prazo. Mas deixa um alerta: esperam-se tempos ainda mais exigentes para os portugueses.
Com os sucessivos confinamentos decretados pelo Governo devido à pandemia de covid-19, as limitações horárias e a quebra no turismo, vários postos de trabalho ficaram à prova e o resultado é negativo. Uma "quebra brutal", que veio significar "desemprego e inatividade em setores que tradicionalmente não estavam tão afetados por estas circunstâncias, mas que com esta crise foram particularmente atacados", lembra o provedor. "Por isso, temos hoje pessoas diferentes a sofrer situação de pobreza e em risco de poder ver as suas vidas - por força da perda dos salários, da perda do emprego - em dificuldades acrescidas noutras dimensões: na habitação, naquilo que são as suas despesas normais de uma semana, na educação dos filhos."
As estatísticas comprovam os receios. O número de inscritos no Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) mostra que o número de inscritos registado em outubro (data dos dados mais recentes) está 34% acima do registado no período homólogo. O desemprego de pessoas com deficiência voltou até aos níveis assinalados em 2016. E apoios como o complemento solidário para idosos e a prestação social para a inclusão viram os pedidos aumentar entre março e setembro deste ano.
Nem com a chegada das vacinas se prevê, a curto e médio prazo, cenários mais otimistas. "Temos de nos preparar para um embate ainda mais duro [no início do próximo ano] naquilo que são as condições de vida das pessoas, num momento em que forem rareando ou cessando os apoios que estão montados", alerta Edmundo Martinho. E acrescenta: "Felizmente, temos tempo" de agir, começando pela estratégia que está a ajudar a desenhar. Esta é "a primeira vez" que Portugal vai "dispor de um documento-padrão que vai servir de referência para todas as intervenções neste domínio".
O provedor da SCML não tem dúvidas de que a atual pandemia veio sublinhar o papel do Estado como "relevante", depois de "montado um mecanismo gigantesco de apoios como nunca se viu em Portugal". Mas serão as medidas existentes suficientes para combater os desafios futuros ou o trabalho desta comissão eleita pelo Governo deve assentar em novas medidas de apoio?
Edmundo Martinho considera que se deve tanto "adaptar medidas que já existem aos tempos que vivemos" como "ser capaz de avançar com novas".
De uma perspetiva pessoal, considera que o futuro está em unir todos os apoios num único. "O sistema poderia ganhar se pudéssemos fundir todas estas prestações numa só e tornar este apoio de cidadania desenhado à medida de cada família, à medida de cada circunstância". O que poderia "ajudar a combater quer a estigmatização que se associa a algumas prestações quer a própria fragmentação dos apoios".
Qualquer que seja o mecanismo adotado, o Estado deverá contar com as autarquias, que o coordenador diz serem "uma peça absolutamente decisiva deste processo". "Se há coisa que hoje toda a gente defende é esta necessidade das soluções de proximidade. Ou seja, precisamos muito de medidas nacionais, de âmbito universal, mas a sua concretização é sempre feita num território concreto, numa família concreta, numa pessoa concreta. E isso obriga a que as soluções quanto mais próximas estiverem das pessoas e dos problemas melhor conseguirão responder àquilo que são as necessidades que temos."
A estratégia, cujo primeiro rascunho foi apresentado ao Governo no dia 15 de dezembro, assenta em vários eixos de ação, entre os quais a pobreza infantil, o trabalho, a diferenciação territorial, o acesso aos serviços e direitos, a habitação e também o acesso à literacia da saúde. E embora Edmundo Martinho aponte os idosos, as crianças e as pessoas com deficiência como os três principais alvos deste documento, frisa que deve ser uma estratégia dirigida a todos aqueles que se encontram em situação de pobreza e àqueles cujo risco de lá chegar se pode evitar.
"Esta questão da pobreza tanto tem de ser vista naquilo que é imediato, nos apoios imediatos que é preciso dar à sobrevivência das pessoas, como tem de ser vista na perspetiva do médio e longo prazo. Ou seja, para assegurarmos que uma criança que nasce numa família pobre não tem necessariamente de se tornar um adulto pobre", diz. O provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa lembra que a "pobreza tem a capacidade de se reproduzir de geração em geração", e "nós temos de ser capazes de quebrar nalgum ponto e nalgum momento" a cadeia expectável.
O que aponta como uma ambição desta estratégia, que olha para os próximos dez anos do país. Se por um lado a Comissão procura "perceber quais são as respostas que temos de dar, e que têm que ver com a circunstância que vivemos, muito conjuntural", "ao mesmo tempo, e porque é uma estratégia a dez anos, é uma estratégia que tem de ser capaz de ir às questões mais estruturais e que têm que ver com a pobreza."