Edmundo Martinho. "Estamos a criar um programa de emprego para pessoas com deficiência"
Das várias áreas de intervenção da Santa Casa há algum programa que seja a cara da instituição?
Há muitos, mas, já que estamos a celebrar os 520 anos, há talvez um particularmente emblemático, pela dimensão, ambição e sobretudo por estar muito impregnado pelos valores e missão da Santa Casa. É o Lisboa, Cidade de Todas as Idades, juntamente com a Câmara Municipal de Lisboa. Significa globalmente um investimento de umas centenas de milhares de euros na cidade em respostas sociais dirigidas sobretudo à população mais velha. É talvez o programa mais ambicioso e que melhor exprime esta ideia de que a Santa Casa, sendo uma instituição com muitos anos, está na linha da frente daquilo que é assegurar melhores condições de vida às pessoas, principalmente àquelas que mais precisam.
Este programa está a ser lançado. Vai funcionar mais no apoio domiciliário?
É um programa que se desdobra em três frentes: promoção da vida ativa; da vida autónoma; e da vida apoiada. Porque são, no fundo, as grandes dimensões que o envelhecimento populacional tem vindo a determinar. Desde as acessibilidades na cidade, passeios preparados para prevenir quedas até à institucionalização ou às respostas residenciais, passando naturalmente pelo apoio domiciliário, esse é talvez o aspeto mais ambicioso do programa, que é estender um apoio domiciliário de muita qualidade a um número muito considerável de pessoas. É um programa que tem esta abrangência imensa de assegurar que Lisboa é uma cidade amiga das pessoas independentemente da idade e da condição física.
O apoio à terceira idade e à infância é talvez o mais conhecido da Santa Casa, mas há muitas outras áreas em que trabalham?
A Santa Casa tem três grandes pilares: um tem que ver com a ação social; outro com a infância e a juventude e o outro tem que ver com a população mais velha. Temos depois a área da saúde, em que, além dos cuidados continuados, inaugurámos recentemente o novo hospital ortopédico de Sant"Ana, na Parede, e temos o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, em que somos uma referência. E temos a cultura, que adquire cada vez mais relevância, quer na preservação e reabilitação do nosso próprio património edificado quer na oferta à cidade de mais eventos culturais - na perspetiva de tornar a cultura acessível e não apenas uma coisa para as elites. Para não falar, obviamente, em tudo aquilo que se associa aos Jogos Sociais e ao apoio que os jogos dão no domínio do desporto, que vai desde o apoio direto a iniciativas ao apoio às federações, passando pelo apoio aos próprios atletas. As áreas são imensas. A Santa Casa tem vindo a desenvolver-se nos diferentes domínios de atividade da vida social. Criámos um fundo que está dotado de mais de quatro milhões de euros para o apoio às vítimas mais diretas dos incêndios de junho e outubro, e vamos com isso apoiar fundamentalmente jovens - vamos chegar a cerca de dez mil -, de forma a poderem continuar os seus estudos.
Qual é o orçamento anual para este tipo de projetos? E de onde vem esse dinheiro, só dos jogos?
Do conjunto das vendas dos Jogos Sociais - que em 2017 superaram pela primeira vez a barreira dos três mil milhões de euros -, cerca de 70% regressam às pessoas por via dos prémios. Dos restantes 30%, a parte mais substancial, cerca de 72%, 73%, é para organismos públicos, nomeadamente os ministérios do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, da Saúde e da Educação - todo o desporto escolar é basicamente financiado por verbas dos Jogos Sociais. As políticas que têm que ver com a igualdade de género e o combate à violência doméstica são financiadas também em parte pelos Jogos Sociais do Estado. E há uma parte que fica para a Santa Casa, para poder desenvolver as suas atividades. Estamos a falar de um orçamento global da Santa Casa que anda à volta dos 200 milhões de euros por ano. Que resulta, em parte, das receitas que lhe cabem dos jogos, mas também daquilo que é o rendimento do nosso património imobiliário, que está arrendado, em particular em Lisboa, e que também produz receitas com algum significado. Digamos que do conjunto das receitas dos jogos, 97% regressam à sociedade por via dos prémios, daquilo que se paga aos nossos mediadores no país ou por via daquilo que se devolve aos ministérios, às diferentes federações desportivas e aos organismos.
Como se decide em que áreas apostar?
É uma escolha que resulta da combinação de vários fatores, desde logo as áreas de missão que estão nos estatutos da Santa Casa, aos quais não pode fugir e a que tem de se dedicar de alma e coração. É o caso da Ação Social, do apoio às pessoas que estão em necessidade de algum tipo. Depois, a Saúde, com três grandes áreas em que trabalhamos e que queremos continuar a desenvolver: a reabilitação, em que a Santa Casa é não só pioneira como, sobretudo, referência; a cirurgia ortopédica - estamos a fazer cirurgia ortopédica geriátrica, porque normalmente as pessoas mais velhas já têm alguma dificuldade em aceder à capacidade cirúrgica instalada; e temos a saúde de proximidade, com os centros de saúde de que dispomos na cidade de Lisboa e que servem populações, de uma forma geral, mais fragilizadas. A Santa Casa tem de ser parte daquilo que são as opções no domínio das políticas públicas. Por exemplo, nos cuidados continuados, há hoje uma política de desenvolvimento da rede de respostas e não podemos estar fora desse tipo de prioridades. Vamos acentuar muito, mas mesmo muito, esta capacidade em Lisboa. Portanto, missão estatutária, políticas públicas e depois as opções que em cada momento resultam da apreciação que se faz da vida da cidade. Mais um exemplo, a Santa Casa tem uma responsabilidade muito grande no domínio do acolhimento de crianças e jovens. Além de corresponder à missão da Santa Casa, de corresponder a um desígnio público generalizado, há também aqui uma opção da Santa Casa de dizer "esta tem de ser uma prioridade de primeiro plano para nós". Isso significa investimentos em espaços de acolhimento e sobretudo um investimento muito grande que estamos a fazer na qualificação das equipas técnicas, com mais técnicos e mais bem preparados.
Há decisões de impulso?
Há um apoio que de repente nos é pedido e estamos cá para acudir. O exemplo mais recente é a Fundação Ricardo Espírito Santo, que teoricamente não tem nenhuma proximidade com a missão da Santa Casa mas, sendo uma instituição cultural de grande relevo na cidade de Lisboa, não podíamos deixar de dizer presente quando foi suscitada a questão de apoiar a fundação. Como foi também o caso dos incêndios. Resolvemos fazer este fundo a que chamamos Recomeçar exatamente para dizer que a Santa Casa está presente em acontecimentos que não são previsíveis, mas que exigem resposta de nós todos e, em particular, de uma entidade como a Santa Casa.
E há alguma área completamente nova de intervenção da Santa Casa?
Na investigação. Além daquilo que já fazemos, um dos maiores prémios nacionais no domínio das neurociências é o Santa Casa Neurociências, que apoia projetos de investigação no domínio das demências, das neurociências, das questões de lesões vertebromedulares; e [temos ainda] o Prémio Lobo Antunes para jovens médicos. Pensamos que a Santa Casa tem obrigação de desenvolver esta área e queremos fazê-lo. Há uma outra que tem uma ambição diferente. A Santa Casa está a trabalhar com a ONCE espanhola no sentido de vir a criar no país um programa de empregabilidade para as pessoas com deficiência. Em Portugal temos um défice tremendo desse ponto de vista e queremos criar uma entidade que seja um apoio permanente ao emprego de pessoas com deficiência, mas ao emprego no mercado regular, não um emprego protegido. Ajudar as pessoas pela formação e depois pelo apoio no acesso a oportunidades de trabalho. Ajudar a que façam a sua vida e a poderem candidatar-se a um emprego como qualquer outra pessoa, obviamente levando em conta aquilo que possam ser as capacidades instaladas que tenham. Se conseguirmos fazer isso, é muito importante o que estamos a fazer juntamente com as organizações que representam as pessoas com deficiência. Queríamos muito que a Santa Casa honrasse estes 520 anos inovando e mostrando que a idade não é um fator limitativo da inovação da criatividade.
Este programa para pessoas com deficiência já está a decorrer?
Ainda é um projeto, não está ativo. Já se fizeram um conjunto de reuniões, quer com as organizações que representam as pessoas com deficiência em Portugal quer com quem fora do país já tem experiência neste domínio, como a fundação ONCE. Portanto, estamos numa fase em que se está a preparar o modelo para pôr isto em prática, juntamente com empresas em Portugal. Queremos suscitar a adesão das empresas não na perspetiva do apoio às pessoas com deficiência mas no sentido de dar a estas pessoas acesso a um direito, que é o direito ao trabalho. E isso queremos fazê-lo de forma muito clara. Não se trata aqui de um apoio social mas de suportar os processos junto destas pessoas para que possam aceder a oportunidades de trabalho.
Há já alguma data específica para arrancar?
Não. Estamos ainda a trabalhar com os nossos amigos da ONCE. O que queremos é ver se ao longo deste mês de abril temos o modelo todo desenhado para podermos arrancar. Gostava de que, enfim, no aniversário da Santa Casa [15 de agosto] pudéssemos ter alguma coisa de concreto. Temos uma grande ambição em relação a este projeto.
É para aplicar apenas em Lisboa?
Este projeto é de ambição mais nacional. Inevitavelmente vai ter de começar de forma progressiva, não é uma coisa que de um dia para o outro possa estar presente em todo o país, mas a ambição que temos é de que isto possa replicar-se.
Como foi a transição com a saída de Pedro Santana Lopes e ter de assumir um cargo que não estava à espera?
Tudo isto foi um bocadinho inesperado. De qualquer modo, obviamente que para mim é um orgulho muito grande. Mas também significa uma responsabilidade acrescida, sobretudo vindo de um período com o doutor Santana Lopes, que foi um provedor muito marcante nesta casa. Pela imagem pública que tinha, deu muita visibilidade a muita coisa da Santa Casa. Mas de que não tenho nenhuma espécie de receio. Há uma coisa que a mim me anima sempre que é a possibilidade que a Santa Casa nos dá de fazer alguma coisa para benefício das pessoas.
Houve alguma coisa que o tivesse surpreendido no trabalho da Santa Casa?
A diversidade. É uma instituição muito positiva e torna tudo isto muito mais vivo, mais dinâmico, coloca também exigências de acompanhamento, de estudo, de preparação muito mais intensas.
Já se cruzou com alguma história que o tenha levado a decidir apostar numa área?
Esta questão da deficiência, que é uma coisa com que nos confrontamos diariamente, porque temos o único centro no país que forma pessoas com cegueira adquirida, adultos, pessoas que cegam por qualquer razão, por doença, acidente. Isso levou-me a pensar que tínhamos de fazer alguma coisa nesse sentido. Depois, a questão dos nossos jovens. Acolhemos muitas crianças e jovens que vêm por decisão dos tribunais, e eu sou tutor delas todas. São cerca de 300 e muitas crianças. A existência deste conjunto de crianças ao cuidado e à responsabilidade da Santa Casa é uma coisa que marca muito e que também torna ainda mais urgente dar prioridade absoluta às condições de acompanhamento e de crescimento destas crianças no seio da Santa Casa.