Ecos simbólicos da Guerra Fria

Este é o retrato do director da Alliance Française numa cidade da Sibéria, preso pela polícia russa e sujeito a um processo chantagista de acusação: <em>Kompromat - O Dossier Russo</em> tem como trunfo maior a composição de Gilles Lellouche.
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Há toda uma coleção de filmes sobre a Guerra Fria que definem, se não uma tradição, pelo menos um capítulo relativamente homogéneo da história do cinema. De Dr. Estranhoamor (1964), de Stanley Kubrick, a A Ponte dos Espiões (2015), de Steven Spielberg, são muitas as narrativas que, entre o realismo e a farsa, espelham as convulsões de várias décadas da geopolítica, desembocando na Queda do Muro de Berlim, em 1989.

Tal memória ecoa, simbolicamente, na produção francesa Kompromat - O Dossier Russo, uma realização de Jérôme Salle. Não por se tratar de uma história da Guerra Fria, já que estamos perante uma odisseia vivida no século XXI; antes porque as suas componentes dramáticas evocam aquele género de filmes e também, indiretamente, a literatura que muitas vezes os inspirou. A esse propósito, recordemos o exemplo excecional de O Espião que Saiu do Frio: primeiro, o romance de John Le Carré, publicado em 1963, depois a respetiva adaptação cinematográfica, estreada dois anos mais tarde, com realização de Martin Ritt.

O novo filme inspira-se no caso verídico do escritor francês Yoann Barbereau (n. 1978) que, em 2011, foi nomeado diretor da Alliance Française em Irkoutsk, uma cidade da Sibéria oriental. Quatro anos mais tarde, seria preso de forma brutal pelo FSB (sucedâneo do KGB), acusado de pedofilia pelas autoridades russas. Na prática, Barbereau foi vítima de um "kompromat", quer dizer, um processo de acusação fundamentado em provas e documentos forjados.

Jérôme Salle não obteve autorização para contar a história de Barbereau, por ele narrada no livro Dans les Geôles de Sibérie (ed. Stock, Paris, 2020), mas o filme é assumidamente inspirado nas suas peripécias. O diretor da Alliance Française chama-se, agora, Mathieu Roussel e, tal como Barbereau, é sujeito a um processo de acusação sem consistência, aparentemente motivado pelo "liberalismo" dos espetáculos por ele apresentados naquela instituição do estado francês.

Gilles Lellouche, intérprete da personagem de Roussel, carrega o peso dramático do filme - ele é uma figura "clássica", na linhagem de uma galeria de atores franceses a que também pertencem, por exemplo, Jean Gabin ou Lino Ventura. É por Lellouche que passam todos os contrastes desta saga, desde o choque inicial das acusações até às nuances de uma tenaz resistência psicológica e moral.

É pena que Kompromat - O Dossier Russo nem sempre consiga equilibrar a dimensão intimista das vivências de Roussel com a tentativa de criar um certo "suspense" característico do "thriller". A construção narrativa, envolvendo uma espécie de carrossel de "flashbacks", embora sugestiva, tem, por vezes, qualquer coisa de exibicionismo formalista. Lellouche impõe-se como o trunfo mais forte, aliás liderando um elenco muito sólido. O destaque vai também para a atriz polaca Joanna Kulig, intérprete de uma mulher russa que ajuda Roussel - lembramo-nos dela em particular no filme de Pawel Pawlikowski, representante da Polónia nos Óscares de 2019, com um título que, agora, não deixa de suscitar alguma ironia: Guerra Fria.

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