Já vimos este filme: em dezembro de 2013, partindo de uma região longínqua da Guiné, um vírus mortal espalha-se silenciosamente durante meses. Era necessário diagnosticar. Decidir com rapidez para conter o surto. Porém, os primeiros casos de contágio não foram detetados nem formalmente reportados à Organização Mundial da Saúde (OMS), pelo que o ébola chegou aos grandes centros urbanos de Libéria, Guiné e Serra Leoa mais mortal (e difícil de rastrear) do que nunca..Os infetados morreram aos milhares até 2016 - pelo menos 11 300 pessoas em 30 mil casos registados, mais do que nos outros surtos de ébola todos somados. Não foi a primeira vez que o vírus atacou na África Ocidental nem se esperava que fosse a última, mas os estragos excederam as expectativas..Julho de 2019: a OMS declarava o mais recente surto de ébola na República Democrática do Congo como emergência global de saúde de interesse internacional, pelo risco de propagação da doença a outros países. Desde abril de 2018, 3406 novos casos traduziram-se em 2236 mortes..É já a segunda pior epidemia de ébola na história da África Ocidental a seguir à de 2014-2016, o que nos leva a questionar: por que razão continua o vírus fora de controlo ao fim deste tempo todo? Porque é tão temido? Como se propaga? E o que aprendemos nós com estes surtos - ou devíamos ter aprendido? "O ébola é um vírus do grupo 4, o que significa que tem um elevado risco pessoal e coletivo, transmite-se de pessoa para pessoa e até recentemente não existia qualquer tratamento nem profilaxia eficaz", explica Ana Pelerito, especialista em biossegurança e biopreparação do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge..O facto de ser altamente infeccioso e fatal em até 90% dos casos (média de 50%) torna-o especialmente temido: "Pensa-se que os morcegos-da-fruta (família Pteropodidae) são os hospedeiros naturais do vírus ébola, introduzido na população humana pelo contacto com sangue, secreções, órgãos ou outros fluidos corporais de animais infetados como morcegos, chimpanzés, gorilas, macacos, antílopes ou porcos-espinhos encontrados doentes ou mortos na floresta tropical.".Entre humanos, a transmissão acontece pelo contacto direto - através da pele ou das mucosas - com sangue ou fluidos corporais de uma pessoa que está doente ou morreu de ébola, ou com objetos que foram contaminados por fluidos corporais (sangue, fezes, vómito, sémen ou mesmo leite materno) de alguém doente com ébola ou que morreu da doença. "Uma vez que estudos indicam que o reservatório deste vírus é o morcego-da-fruta, que é um alimento dos macacos e até de alguns africanos, a transmissão ao homem ocorreu pela ingestão de carne ou pelo contacto com sangue, secreções ou órgãos infetados destes dois animais", acrescenta Sofia Núncio, responsável pela Unidade de Resposta a Emergências e Biopreparação do Instituto Ricardo Jorge..Para agravar ainda mais o cenário, trata-se de dois surtos epidemiologicamente diferentes: o de 2014-2016 ocorreu numa zona geográfica onde nunca tinha sido detetado antes, com o desconhecimento da patologia, dos sintomas e a falta de preparação dos profissionais de saúde a permitir que se estabelecessem várias cadeias de transmissão na região. "Não ajudou nada serem países de recursos humanos e financeiros limitados, com topologias de difícil acesso e ritos culturais muito propícios à disseminação do vírus na população, como por exemplo a ingestão de carne de animais selvagens e rituais funerários que implicam a lavagem do corpo dos mortos", sublinha a especialista em emergência Sofia Núncio..Quando finalmente se identificou o vírus, diz, a resposta dos próprios locais à ajuda externa foi complicada: "Começaram a esconder os doentes e os cadáveres com medo de que alguém os levasse e impedisse os cultos de se realizarem. A reagir de forma agressiva às autoridades de saúde que tentavam combater o surto no terreno." Além disso, a falta ou reutilização do equipamento de proteção individual foi responsável pela elevada mortalidade entre os já escassos recursos humanos que combatiam a doença, com especial incidência em enfermeiros, médicos e auxiliares que trabalhavam nos hospitais e centros de saúde locais..Mais tarde, no surto atual da República Democrática do Congo, a mortalidade do ébola seria potenciada pela violência armada no país e o ambiente extremo em que deflagrou: uma zona de selva tropical cerrada junto às fronteiras com o Uganda e o Ruanda, perigosa, de difícil acesso. "O país está familiarizado com a doença e os procedimentos depois de outros oito surtos detetados anteriormente, pelo que existe alguma capacidade de resposta instalada", admite Ana Pelerito, que em 2018 chegou a integrar uma missão internacional de prevenção e preparação de resposta rápida ao ébola em Luanda, Angola, face a esta epidemia no Congo..Desta vez o problema decorre de estar a acontecer numa região diferente, com forças militarizadas rebeldes que têm atacado as entidades nacionais e internacionais no terreno e dificultam a implementação das medidas que poderiam ter já travado a epidemia, adianta a investigadora, conhecedora da dura realidade em que um dos maiores entraves continua a ser a resistência das populações. "São tudo fatores que impedem o controlo do surto, apesar de existirem alguns medicamentos que parecem contribuir com sucesso para a recuperação dos doentes e de a OMS ter autorizado a utilização de duas vacinas, uma da quais com eficácia comprovada", diz..Quanto a Julianna Margulies, a Alicia Florrick da série The Good Wife, nunca mais foi a mesma mulher despreocupada desde que interpretou a tenente-coronel Nancy Jaax na minissérie The Hot Zone, da National Geographic, sobre a história verídica de um surto de ébola descoberto nas instalações de pesquisa de Reston, EUA, em 1989. "Passei a levar desinfetante das mãos para todo o lado", confessou a atriz à agência Lusa quando a série se estreou no país, em setembro de 2019, ainda o ébola estava bastante ativo no Congo. "Também nunca me agarro aos varões no metropolitano e estou muito consciente de quantas vezes por dia toco na minha cara - tento não o fazer." De resto, The Hot Zone baseou-se no livro homónimo de não ficção lançado por Richard Preston, em 1994, contando como a oficial superior do exército norte-americano detetou ébola em macacos trazidos das Filipinas. Decidida a travar o caos inevitável que se seguiria se por acaso a população se apercebesse do perigo, Jaax conseguiu evitar o contágio nas proximidades da Casa Branca numa altura em que ainda não havia protocolos definidos pelo Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC, a agência reguladora dos EUA) para se gerir uma eventual epidemia de ébola no país. Já todos vimos este filme antes, de facto. É apenas uma questão de tempo até ao próximo.