É urgente o amor (na Catalunha)

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A primeira vez que fui a Barcelona tinha 17 anos. A ideia da viagem nem sequer foi minha: surgiu por iniciativa do meu melhor amigo na altura, um hispano-alemão que também nunca tinha estado na Catalunha. Pensando bem, em 1990 apenas tinha saído de Madrid, a minha cidade natal. Além de Portugal (o país da minha mãe e destino habitual das férias), conhecia Badajoz (bastante mal) e algumas terras castelhanas e andaluzas. Pouco mais.

A experiência foi todo um acontecimento, porque não só viajávamos por nossa conta - uma sensação de independência inédita - como íamos a caminho do desconhecido, de um lugar envolto em mitos e enigmas. Era verão e o meu amigo sugeriu levarmos T-shirts com motivos surfistas e a palavra "Madrid" escrita com letras fluorescentes. Na minha inocência ou distração, não percebi logo que as T-shirts implicavam um desafio, ou talvez um preconceito que o meu amigo queria pôr à prova e não teve a coragem de testar sozinho.

Desde o primeiro minuto, tive a sensação de estar num país diferente: os táxis, pretos e amarelos, faziam pensar nos táxis lisboetas (os madrilenos eram brancos com uma risca vermelha). Por toda a parte viam-se rótulos numa língua exótica, embora vagamente familiar: perruqueria (cabeleireiro), llet merengada (uma espécie de leite condensado com canela), estació (estação).

Passeámos no fabuloso e bem cuidado Parc de la Ciutadella, melhor e com mais esculturas do que qualquer parque conhecido por mim (evidentemente, também não tinha estado ainda em Paris). Fomos ao Bairro Gótico e aos bares de cava, o famoso espumante catalão; admirámos as grandes avenidas e as fachadas modernistas, mas passámos ao lado da Sagrada Família, rodeada de tapumes e com ar triste, sem muitas das esculturas e dos chamarizes que a embelezam hoje.

O ponto alto - a julgar pela profusão de fotografias que fizemos - foi o Parc Güell, uma explosão de formas e cores surpreendentes com vista sobre uma cidade encantadora, com mar, montanha e uma atmosfera que comecei a identificar (na sequência das primeiras impressões e conversas) como mais "europeia" e menos "espanhola". Juro que, por momentos, hesitei na hora de pagar: pesetas ou moeda estrangeira? O meu amigo e eu vestimos as T-shirts em dias alternados e não aconteceu nada: nem olhares esquisitos nem situações embaraçosas.

O seguinte teste significativo tdecorreu uns 15 anos mais tarde. O Benfica visitava o FC Barcelona num duelo da Liga de Campeões, e a SIC e a TSF pediram-me para cobrir o acontecimento. Toda a gente falava da famosa final de Berna que valeu o primeiro título da UEFA aos encarnados (e nas três bolas ao poste que deram origem à "maldição" catalã, um azar sem paralelo nas crónicas blaugranas), mas eu lembro-me essencialmente de duas entrevistas que fiz.

A primeira foi às portas de Camp Nou, num quiosque de gelados com as cores do Barça e uma estelada - a bandeira independentista tantas vezes mostrada nos últimos dias, que junta às cores da bandeira oficial da Catalunha (a senyera) uma estrela inspirada na bandeira cubana. Em direto, falámos do jogo iminente; mas uma vez desligados os microfones, a conversa levou-nos por outros rumos. Às tantas, a vendedora confessou-me que o senhor tão discreto que tinha ao lado era o marido, fervoroso adepto do Real Madrid. Conclusão: detestava o clube (rival) mas amava sobre todas as coisas o homem com quem estava casada há décadas. No mesmo ciclo de reportagens, fui a uma das penyas (claques organizadas) mais antigas e fiéis do Barça, no bairro de l"Eixample. O presidente também confessou, off the record, que a sua alma gémea era de Madrid e que tinha muitos e bons amigos espalhados por toda a Espanha, "inclusive adeptos de outros clubes". Numa dada altura da conversa, regada com bebidas espirituosas, o homem não pôde esconder um brilho aquoso nos olhos.

O jogo disputou-se na primavera de 2006 (vitória local por 2-0, golos de Ronaldinho e Eto"o) e no verão seguinte conheci uma miúda de Barcelona no Algarve. Subjugado pelos seus olhos negros, percorri centenas de quilómetros e voltámos a encontrar-nos, desta vez no extremo oposto da Península Ibérica. Com ela conheci a Catalunha profunda. Depois de um fim de semana nos Pirenéus, onde fui iniciado nos arcanos do hino catalão (Els Segadors, uma canção banhada em sangue e com ecos de 1640), visitámos a paisagem protegida do cabo de Creus e a Casa-Museu Salvador Dalí em Portlligat. Também pude comprovar que Cadaqués não era, afinal, a "aldeia mais bonita do mundo" - como afirmava o próprio Dalí. Por coincidência, cheguei a Cadaqués num Onze de Setembre (o dia nacional que assinala a rendição de Barcelona durante a Guerra de Sucessão Espanhola, em 1714), e talvez por isso a Igreja de Santa Maria, que domina a pitoresca baía piscatória, estava coberta por uma bandeira amarela com franjas vermelhas de dimensões gigantescas, tamanho Christo.

O verão passou, o romance acabou, mas a catalã e o madrileno mantiveram o contacto e a amizade (à distância). Entretanto, voltei várias vezes à Catalunha, por razões de trabalho e porque tenho lá bons e velhos amigos: entrevistei Ferran Adrià no saudoso El Bulli, comi ouriços-do-mar num veleiro centenário, festejei um casamento entre uma irlandês e uma brasileira (outra história de amor!) na espantosa vila medieval de Besalú... A Catalunha é, desde há séculos, um pequeno e poético paraíso que conjuga, de forma maravilhosa, arte e gastronomia. Contudo, em Besalú observei, pela primeira vez, olhares esquisitos e situações um tanto embaraçosas. Foi em 2012 (dois anos depois de o Tribunal Constitucional ter chumbado o Estatuto da Catalunha, aprovado em referendo em 2006) e voltei a Lisboa com a sensação de que alguma coisa estava a mudar.

Na semana passada retomei o contacto com a miúda dos olhos negros e com outra amiga catalã que conheci em Besalú. Ambas se deram ao trabalho de comentar alguns dos meus posts no Facebook, essencialmente textos de opinião publicados na imprensa espanhola. Ambas estão indignadas, até certo ponto radicalizadas. Uma delas sublinha que deixou de ser "equidistante" e que por esse motivo tencionava votar (de facto, publicou várias fotografias com uma urna de plástico como pano de fundo). A outra foi mais longe e acusou-me de "manipular e falar em nome dos catalães" simplesmente por eu ter republicado um editorial do El País sobre o referendo (um texto que distribui culpas entre os governos catalão e espanhol pela "vergonhosa jornada que os cidadãos da Catalunha foram obrigados a viver").

O impasse agrava-se e o afastamento é indesmentível. Todo o mundo fala na necessidade de dialogar, mas poucos estão dispostos a ouvir. A sociedade na Catalunha está fortemente dividida e a relação com a Espanha nos cuidados intensivos, tal como o homem que levou com uma bala de borracha na cara no meio da confusão de domingo. Agora, mais do que nunca, "é urgente o amor", como dizia Eugénio de Andrade - poeta e tradutor de poetas espanhóis, mas pouco conhecido do outro lado da fronteira: "É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas".

Jornalista

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