"É uma pena, está tudo abandonado, destruíram tudo"

Almada, Seixal e Barreiro acolheram unidades fabris emblemáticas em zonas faladas de quando em vez com anúncios de grandiosos projetos urbanísticos. Ainda não saíram das intenções. A degradação é evidente, sobretudo em Almada, para tristeza dos moradores e dos antigos operários.
Publicado a
Atualizado a

Fale com o Armindo, ele é que pode dizer o que era a fábrica de moagem Aliança, uma grande empresa." Terá sido há muitos anos. Hoje, é um conjunto de ruínas: silos, oficinas, armazéns, escritórios, refeitório, padaria, bairro industrial, ruas.

Armindo Dionísio mora ao lado da fábrica, no Caramujo, em Almada, concelho onde muito do património industrial desativado se degrada. Não só a Fábrica Industrial Aliança como a Lisnave da Margueira e toda a beira-rio junto a Cacilhas, no Ginjal.

Edifícios industriais abandonados. mas que também existem no Seixal e no Barreiro.
Os três concelhos reúnem o chamado Arco Ribeirinho Sul, de que se fala de quando em vez com promessas de megaprojetos que tardam em arrancar. Acolheram unidades fabris emblemáticas e marcaram o desenvolvimento do país do século passado, como a Lisnave, a CUF e a Siderurgia Nacional.

Em 2015 foi criada a marca Lisbon South Bay, com a participação das três autarquias. Anunciou-se uma revolução na requalificação urbana, algo nunca visto desde as obras da Expo 98: 900 hectares a sul de Lisboa. Ciclicamente, há notícias sobre o megaprojeto, nomeadamente dos investidores interessados. Mas nada em concreto.

A Câmara de Almada não respondeu às perguntas do DN e a do Barreiro remeteu para a sociedade Baía do Tejo, S.A., empresa pública, criada em 2009, resultante da fusão por incorporação da Quimiparque (Barreiro), da SNESGES e da Urbindústria (Seixal) e do Fundo Margueira Capital (Almada). Refere como objetivo "acelerar mais a reconversão e revalorização destes territórios, os quais têm potencialidades assinaláveis para o seu desenvolvimento e valorização". Recuperação de edifícios e gestão dos parques empresariais de Almada, Seixal, Barreiro, além de Estarreja e Vendas Novas. A vocação de revitalização só parece estar concretizada no Barreiro (242 empresas) e no Seixal (44).

Justifica Humberto Fernandes, do departamento de comunicação da empresa: " Importa notar que os territórios sob gestão da Baía do Tejo nestes três municípios são bastante diversos entre si, em aspetos tão essenciais como o tipo e quantidade de património industrial presente, o respetivo estado de conservação, a utilização da área envolvente ou as perspetivas planeadas para o seu futuro." Por exemplo, nos terrenos da Lisnave da Margueira não existe património industrial classificado.

Sublinha a importância "dos custos associados às operações de recuperação e manutenção deste tipo de património, que podem ser agravados pela complexidade, raridade ou extensão dos bens a salvaguardar". Verbas de investimento que terão de resultar das receitas de exploração dos parques empresariais e, "eventualmente, de fundos estruturais disponíveis para esse fim".

O Caramujo é uma zona industrial da freguesia da Cova da Piedade, em Almada, junto ao rio Tejo, sobretudo da moagem de trigo e produção de cortiça. Integra o Arsenal do Alfeite, a Base Naval da Marinha.

Armindo Dionísio, 67 anos, tornou-se operário na fábrica de moagem aos 14 anos. "A bem dizer, nasci ali dentro", aponta para os grandes silos de betão. "É uma pena, tudo abandonado, destruíram tudo, roubaram o que restava."

Faz-nos uma visita guiada por vários edifícios daquela que era a Fábrica Industrial Aliança, junto à praia da Mutela. "Trabalhei 28 anos na moagem, ensacava a farinha, ainda não tinha idade para trabalhar quando comecei. Chegaram a ser centenas de empregados", recorda. Era um bom emprego, pagavam bem? "Não sei, só conheci aquele." Aponta os armazéns onde abasteciam os camiões com sacas de farinha, mostra as oficinas que estão cheias de lixo. Operavam em três turnos, com início às 9h00 e fim à meia-noite. "Saíam quatro sacos por minuto de cada máquina, era muita farinha. Trabalhavam aqui centenas de pessoas."

Deixou de ter emprego quando a empresa faliu, em 1993, 128 anos depois de ser inaugurada, em 1865. Armindo tinha 38 anos. Trabalhou depois em outra unidade de moagem em Sesimbra. Manteve a pequena habitação ao lado das instalações da Aliança onde mora.

As boas condições do transporte marítimo foi uma das razões que levaram as fábricas a instalarem-se nas zonas junto ao Tejo - era mais uma via para escoar o produto.

Um ano antes do encerramento da Aliança foi pedida a sua classificação como Património de Interesse Público, selo aceite. O que se vê são edifícios devolutos e em contínua degradação, lixo amontoado no interior, sinais de ocupação. Em 2002 foi comprada pela Câmara Municipal de Almada. 20 anos passaram e não houve evolução. "Disseram que se ia fazer tanta coisa, até um hotel, mas continua ao abandono", lamenta o antigo funcionário da fábrica.

A zona que está recuperada é a da Fábrica de Cortiça Romeira, em cujo espaço foi inaugurado o Mercado da Romeira, em junho de 2018.

À saída do Caramujo, dois moradores aproveitam o sol enquanto comentam os anos de oiro da indústria em Almada.

Luís Gama, mais conhecido por "Chineca" (não sabe como surgiu esse nome), 82 anos, nasceu mesmo ao lado da Aliança, mas acabou por trabalhar na Lisnave da Margueira, a umas dezenas de metros, na continuação da linha do Tejo, já em Cacilhas. "Trabalhei toda a vida na indústria naval, mais tarde pela Setenave. Está no mesmo abandono", reclama Luís. Ao lado, Vítor Peres, 72 anos, seguiu o mesmo percurso, mas através de empresas intermediárias. "A Lisnave tinha um outro estaleiro em Setúbal [Mitrena, ex-Setenave] e mudou-se para lá. Diziam que iam fazer aqui um museu, mas não vejo nada", diz.

Os edifícios da Lisnave do lado do rio estão abandonados e com vigilância à entrada. Acolhem uma tenda para a realização de testes à covid-19, um drive thru da Unilabs. No lado oposto da mesma avenida, Aliança Povo MFA, há um ou outro edifício ocupado, nomeadamente os escritórios da Baía Tejo e a Escola Profissional de Almada. Mas, por exemplo, a piscina do Clube Lisnave e a oficina para a reparação dos motores dos navios foram engolidas pela vegetação.

Está prevista para aqueles terrenos a Cidade da Água, no papel desde 2009 e que faz parte do Plano de Urbanização de Almada Nascente (PUAN), conforme o Decreto-Lei n.º 218/2009, de 10 de novembro. Representará um investimento da ordem dos 1,2 mil milhões de euros. Apenas a área da Lisnave faz parte da tutela da Baía do Tejo, mas ainda não está classificada como Património de Interesse - o que a Baía do Tejo diz ser a principal dificuldade para o avanço da reabilitação.

Em 2017 era notícia que o governo dera luz verde para o arranque da urbanização da Lisnave. Dos 45 hectares do estaleiro, 40 passavam para domínio privado do Estado.
"A Margueira não conta com nenhum projeto específico,
embora seja evidente que para o pórtico da Lisnave, ou para qualquer outro, deverá estar em causa a sua recuperação e manutenção. O caso do pórtico é especialmente interessante por se tratar de um equipamento extraordinário na sua dimensão e expressão arquitetónica, o qual se moverá, eventualmente, uma última vez para a sua localização final e definitiva, onde ficará a marcar a frente ribeirinha de Almada, constituindo-se decididamente como a sua imagem de marca", explica Humberto Fernandes.

Não são da responsabilidade da Baía do Tejo a Fábrica Industrial Aliança nem todos os edifícios/barracões ao longo do rio em Cacilhas, no Cais do Ginjal, junto à falésia. Aqui, na margem por debaixo do Cristo-Rei, funcionam apenas três restaurantes - tudo o resto está abandonado e a acumular lixo, com um ou outro armazém, ateliê e habitação (clandestinos?). Há vários anúncios de "perigo de derrocada".

Os armazéns foram construídos em 1845 por João Teotónio Pereira, onde comercializava água para abastecer os navios e outros produtos, como vinho, azeite, vinagre e conservas. A construção da Ponte 25 de Abril, inaugurada em 1966, retirou importância à localidade, ao tornar secundário o transporte por via marítima. E entrou em decadência. Chegou a existir um consórcio envolvendo a autarquia para a sua recuperação, mas acumulam-se sinais de degradação e de vandalização. Faz parte do PUAN.

"Está tudo abandonado há mais de 30 anos. Eram armazéns, depósitos de peixe congelado, de vinho, tanta coisa, até uma fábrica de óleo de bacalhau. Agora é o que vê: tudo estragado, é um perigo. Já viu como está o passeio, cheio de buracos?", lamenta Francisco Gaisita, 74 anos, pescador amador, que trabalhava na Sapataria Charles, no Chiado. Atira: "Se fosse em Lisboa, já não estava assim." Acrescenta o companheiro de pesca, Jacinto Brandão, 70 anos, ex-soldador da Lisnave. "Prometeram muita coisa para aqui, até um hotel, só não disseram quando."

Há um Plano de Pormenor para o Cais do Ginjal e que até teve direito a exposição, em 2018. Na "frente ribeirinha com um quilómetro de extensão, entre o Jardim do Rio e o terminal fluvial de Cacilhas, prevê-se a criação de habitação, hotelaria, comércio, serviços, apartamentos turísticos, espaços públicos - mercado das artes e diversos equipamentos de apoio", anuncia a autarquia.

À entrada do Seixal em direção à baía é impossível não reparar na Companhia de Lanifícios da Arrentela, pela sua dimensão e degradação, sobretudo o edifício principal. Indica que é "proibida a entrada a estranhos", mas o portão de arame nem fechado está. Fundada em 1862, deixou de laborar no final dos anos 80 do século passado. Uma referência no desenvolvimento económico e social do concelho, tal como as instalações da seca do bacalhau da Atlântica, Companhia Portuguesa de Pescas, na Ponta dos Corvos. Ambos em degradação.

Paulo Silva, vereador da Câmara do Seixal, identifica como principal problema à reabilitação do património industrial "não ser propriedade do município". Somam-se "o valor monetário dos trabalhos a realizar para a recuperação desse património e a ausência de financiamento do governo ou de fundos europeus".

O responsável pelos pelouros da Cultura, Juventude, Participação, Desenvolvimento Social e Saúde destaca a recuperação do moinho de maré e da Fábrica da Pólvora de Vale de Milhaços, em Corroios, e da Fábrica de Cortiça Mundet, todos propriedade da autarquia. Assim como o antigo Estaleiro de Reparação Naval, agora transformado em núcleo naval, todos pertencentes ao Ecomuseu Municipal do Seixal.

O Lagar de Azeite da Cooperativa Agrícola de Almada-Seixal deu lugar à Universidade Sénior. Ainda no concelho, está o Alto Forno da Siderurgia Nacional, em Paio Pires, classificado em 2012 de Interesse Patrimonial, que permanece inacessível ao público.

A Fábrica de Cortiça Mundet foi uma das maiores do país no setor corticeiro. Começou a laborar em 1905, chegou a empregar 2500 pessoas, sobretudo mulheres, tinha refeitório, creche e jardim-de-infância. Não resistiu à concorrência de materiais como o plástico. Fechou em 1988 e em 1996 foi adquirida em hasta pública pela autarquia.

Integra o Ecomuseu Municipal, com exposições temporárias, o centro de documentação e informação - e, mais recentemente, o Parque Urbano do Seixal e zonas dedicadas ao desporto e ao lazer. Tem ainda um espaço de restauração: a Factory Mundet. E está a ser construída uma unidade hoteleira de quatro estrelas, com 84 quartos.

O restaurante era o antigo refeitório e recupera muito do seu mobiliário e tradição, como mesas e máquinas. Abriu há cinco anos. "Temos tido muito boa adesão. O nosso problema foi a obrigatoriedade de fechar durante o confinamento, mas depois recuperámos. Estamos sempre cheios", informa Ana Silva, administrativa.

O espaço tem sido prioritário na intervenção urbanística da autarquia, diz Paulo Silva. "Estamos a realizar obras de recuperação de vários edifícios da Fábrica Mundet, nomeadamente das caldeiras, que esperamos ver concluídas no final de 2022. De seguida iremos estudar outras intervenções."

A Baía do Tejo tem no concelho a gestão do parque industrial, que corresponde a toda a área do antigo complexo da Siderurgia Nacional, incluindo o alto forno, que não sofreu melhorias. "Qualquer intervenção sobre esta referência resultará sempre de uma ação alinhada com o município e com as entidades competentes da administração central, para assegurar a sua recuperação, valorização e melhor utilização futura", explica Humberto Fernandes.

Sublinha que se trata de uma "zona industrial em plena utilização, mas com um acervo arquitetónico industrial muito distinto". Está a ser "alvo de caracterização e estudo sobre os usos a dar-lhe".

Falar do Barreiro é falar da Companhia União Fabril (CUF) e de Alfredo da Silva, figura maior da indústria portuguesa no final do século XIX e início do século XX, como prova o mausoléu no local. Em 1975 foi nacionalizada e em 1977 passou a designar-se por Quimigal e a sujeitar-se progressivamente a um processo de desindustrialização.

É neste concelho que a intervenção da Baía do Tejo é mais notória - de resto, é onde tem a sede. "No Barreiro foi preservada e recuperada muita da expressão arquitetónica, humana e empresarial da CUF, antes espaços dedicados à área social (habitação, entretenimento e cultura) e à produção industrial, que, por sua vez, foram - e continuarão a ser - colocados ao serviço das populações e da economia local", refere Humberto Fernandes.

Recentemente, o concelho aderiu à European Route of Industrial Heritage, uma das principais redes de turismo desta área, com dois mil locais de interesse em 47 países.
O Museu Industrial é um desses locais. Resulta da transformação da antiga central a diesel e corresponde a um conjunto de intervenções iniciadas em 1991.

No lado oposto ao parque empresarial está o Bairro de Santa Bárbara, destinado aos funcionários da CUF, com 125 moradias, que têm vindo a ser reabilitadas. Trinta foram transformadas para sediar empresas de serviços e o antigo refeitório deu lugar a um ginásio em 2008. A parte mais antiga do bairro foi construída em 1908 (sul) e a mais recente (norte) em 1932.

Arlete e José Parreira, 77 anos, vivem ali há 53 anos, numa casa com quatro assoalhadas, um quintal e uma lavandaria, pintada e bem arranjada. Ela teve várias funções na CUF - no feltro, na sacaria, também no refeitório; ele começou na zona têxtil e terminou na metalomecânica, onde aprendeu o ofício de soldador, que o marcou com "uma doença nos pulmões".

Recordam facilidades que tinham no bairro operário, onde criaram os filhos, um rapaz e uma rapariga [já falecida].

"Havia de tudo: creche, escola até à 4.ª classe, posto médico, despensa [mercearia, onde podia pagar no fim do mês], padaria, autocarro grátis, não precisávamos de sair do bairro. Íamos à despensa e pagávamos no fim do mês. Trabalhava por turnos, das 7h00 às 15h30 ou das 15h30 às 0h30. As creches estavam abertas até essa hora e tínhamos o autocarro à espera quando saíamos", conta Arlete.

Há poucas famílias do tempo do casal. Os moradores, alguns imigrantes, continuam a irmandade de outrora, mas são poucos, lamenta Arlete. "Tenho muitas saudades desses tempos, é verdade que havia muitos gases das fábricas, mas éramos uma família. Isto agora é um deserto, no tempo dos meus filhos havia muita gente, as crianças brincaram todas na rua."

O parque empresarial está dividido em armazéns, onde laboram 240 empresas das atividades mais variadas. Entre estas o Vhils Studio, de Alexandre Farto, que fez um mural à entrada do bairro.

As próximas obras de reabilitação são o Cinema-Ginásio - Casa da Cultura e o depósito elevado, que dará lugar a um espaço para reuniões. Está também prevista para breve a reabilitação da Casa-Museu Alfredo da Silva e do antigo posto da GNR, onde pretendem instalar meios multimédia interpretativos do passado fabril do Barreiro.

ceuneves@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt