E se os negros americanos se tratam por "Bro" por causa das Irmandades de escravos católicos em Manhattan?

Historiador belga Jeroen Dewulf apresenta às 17.00, na FLAD, em Lisboa, o livro <em>Afro-Atlantic Catholics - America"s First Black Christians</em>. Tema é os primeiros escravos africanos a chegar à América do Norte, que eram católicos e falavam um português crioulizado.
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Jeroen Dewulf, historiador belga flamengo que fez Erasmus no Porto há 30 anos e hoje fala um português fluente, estava a começar a pesquisar a presença neerlandesa em Manhattan, na época em que Nova Iorque se chamava Nova Amesterdão, quando, lendo documentação em neerlandês, Portugal volta de repente à sua vida, como conta: "aparecem-me em documentos do século XVII os nomes dos primeiros escravos africanos a chegar a Manhattan e eram todos nomes portugueses: João, Maria, Conceição, e com apelidos geográficos como Angola ou Congo, pessoas oriundas de vários pontos de África e até de Portugal, como António Fernando de Cascais ou Pedro Português. Os últimos são um caso muito curioso. Deviam ser negros livres, marinheiros talvez, capturados pelos neerlandeses. Os neerlandeses roubavam o que estava nos navios, mas como o comércio de seres humanos era proibido no seu país, António Fernando de Cascais e outros foram vendidos na América do Norte".

O livro que Dewulf vai hoje apresentar na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), em Lisboa, tem como título Afro-Atlantic Catholics -America's First Black Christians e conta como a primeira geração de escravos em Manhattan, chegados durante a primeira metade do século XVII, eram católicos, designando-os como católicos afro-atlânticos. Na verdade, explica o académico belga, "eram africanos com uma forte influência cultural portuguesa, não só o nome com que foram baptizados, mas também a língua, um crioulo, talvez parecido ao que se fala hoje em Cabo Verde ou com o Papiamento, o crioulo luso-africano das Antilhas Neerlandesas (Curaçao, Aruba, Bonaire). Há documentos neerlandeses da época que comprovam que os primeiros falantes da língua portuguesa na América do Norte foram africanos".

Dewulf, que é diretor do Centro de Estudos Portugueses da Universidade da Califórnia em Berkeley, diz que hoje os afro-americanos, na sua grande maioria protestantes, não têm consciência da influência desse catolicismo crioulizado de Nova Iorque na formação da comunidade. E há presença dos católicos afro-atlânticos nessa época também noutras partes dos atuais Estados Unidos, como a Virgínia ou a Carolina do Sul. "A língua perdeu-se rapidamente, mas a memória de África não. Temos documentos que mostram uma família que veio de África, que se tornou livre, e quando conseguiu comprar um terreno lhe chamou Angola", conta o historiador, numa conversa num café de Lisboa. Uns tempos antes, graças a um amigo português, o professor Luís Faria do Instituto Superior Técnico, já me tinha feito chegar um exemplar do livro publicado em 2022, uma leitura fascinante.

"Se hoje se pergunta a um americano se se considera cristão, a comunidade em que mais pessoas respondem sim é a comunidade negra. De certa forma, deveria ser estranho, afinal o cristianismo na versão tradicional é a religião dos opressores. A explicação tradicional é que os africanos quando chegaram às Américas traziam as suas religiões indígenas e só depois, em finais do século XVII, missionários brancos os converteram. Mas a minha investigação mostra que a primeira geração de escravos já trazia a sua própria versão do catolicismo de África e que essa consciência não se perdeu totalmente. Há casos de missionários protestantes que tentam mais tarde aproximar-se da comunidade negra explicando o cristianismo a partir do zero, explicando quem foi Jesus Cristo, e ficam surpreendidos quando descobrem que alguns conhecem a religião", sublinha Dewulf.

Uma das explicações avançada no livro para este catolicismo nos primeiros escravos chegados à América do Norte baseia-se no tipo de religião que os próprios portugueses praticavam quando chegaram à África Negra no século XV, ou seja antes da rigidez da Contra-Reforma. "Era um catolicismo com música, com dança, mais fácil de integrar na cultura africana, misturando-se com lendas, por exemplo Jesus ser africano. Como havia uma grande falta de padres, os padres portugueses treinavam os miúdos africanos mais inteligentes para serem os mestres, uma espécie de catequistas, em que decoravam as orações, pois ninguém escrevia. Em Cabo Verde, São Tomé, no Congo, em Angola, surgiu assim este catolicismo africano. E uma das suas características eram as confrarias, as irmandades, que foram levadas para as Américas", afirma o historiador. Dewulf acrescenta que essas irmandades, únicas organizações de interajuda nas comunidades escravas, mantiveram-se muito tempo na comunidade africana, com os missionários protestantes, mais tarde, a falarem mesmo da existência de sociedades secretas".

Dewulf espera com este livro que a comunidade afro-americana, embora hoje seja sobretudo baptista, ganhe consciência deste papel histórico dos católicos, até porque - e esclarece ser só uma hipótese -,"não haverá uma relação entre os negros americanos de hoje se tratarem por "bro" ou "brothers", irmãos, e a influência das antigas irmandades?".

Nascido em 1972 na Flandres, perto de Brugges, Dewulf estudou Literaturas Germânicas e História. Quando quis aprender uma língua românica, além do francês que já falava, pensou no italiano e no espanhol, "mas essas podia estudar na Bélgica", e como o Erasmus era mesmo um objetivo, decidiu-se pelo português em Portugal. "Preparei-me um pouco, mas mesmo assim o primeiro mês foi muito difícil. As aulas eram em português, não como agora que há muita oferta em inglês. Mas depois tudo melhorou", relembra o belga. Ao fim de um ano regressou a casa, mas o gosto pelo país e pela língua portuguesa levaram-no a candidatar-se a uma bolsa do Instituto Camões para estudar português e poder ser professor. E de novo foi parar à Universidade do Porto, conta, onde mais tarde fez o Mestrado. A ligação a Portugal estava garantida. Seguiu-se o Doutoramento em Berna, sobre Hugo Loetscher, um escritor suíço. Loetscher, que Dewulf chegou a conhecer e de cujo legado editorial é curador, tinha uma relação também com Portugal e com o mundo lusófono. "Há uma história curiosa: ele fez um filme para televisão sobre Portugal, muito crítico da ditadura. O filme não foi exibido na Suíça por causa da pressão da embaixada portuguesa - só depois do 25 de Abril", conta o diretor do Centro de Estudos Portugueses de Berkeley. Loetscher é também autor de uma elegia poética crítica a Salazar e nos anos 70, informou-me Dewulf, publicou vários artigos no DN, um deles com o sugestivo título "Da Goa de Albuquerque à Goa dos hippies".

Despedimo-nos, mas não sem combinarmos mais adiante uma entrevista sobre a rivalidade entre portugueses e neerlandeses no final do século XVI e boa parte do século XVII, uma guerra travada no Brasil, em Angola, e vários pontos da Ásia. Chama-me Dewulf atenção para um facto notável, a desenvolver depois: "a expedição luso-brasileira que reconquistou Luanda dos neerlandeses foi a maior operação militar lançada das Américas para o outro lado do Atlântico até às guerras mundiais do século XX".

Conferência na FLAD é de acesso livre mas exige marcação prévia em fladport@flad.pt

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