Éa coisa que me faz sorrir e me faz feliz. Ver um touro a galopar para mim ou estar de capote a vê-lo enrolar-se à minha volta... Para mim é tudo, não há nada de melhor." Ricardo Capita, 33 anos, "operário químico" na própria descrição, é um "esperador" de touros veterano, com 19 anos de perseverança e muitas pisadelas e "voltaretas" no palmarés, que inclui uma página no Facebook e um site, T-shirts com o nome do "grupo" e uma colhida grave. Talvez se tenha já cruzado com Tânia Fortunato, 19 anos, nascida em Alverca e residente em Alenquer, estudante do 12º ano de Ciências e Tecnologias que quer ser veterinária e é caixa num supermercado, aluna da escola de toureio a pé José Falcão que responde, quando lhe elogiam a coragem de enfrentar os touros, "Não é coragem, é amor". E quem sabe os dois conhecem Pedro Marques, 24 anos, dentista da Marinha Grande, encantado pelas faenas desde que aos três anos o avó paterno o iniciou na Nazaré, comentador tauromáquico aos 13 em sites na net, vice-presidente do clube taurino de Vila Franca e incansável espectador de todas as corridas da península que, na tese de fim de curso, cruzou a profissão e a paixão, arrancando 19 valores com "o traumatismo oro-facial no forcado amador"..O Ricardo, então. Nascido em Vila Franca de Xira numa família oriunda de Coruche, está na última quarta-feira, aproveitando as férias, na terra dos pais para "brincar" em três largadas. "Viemos cinco. O mais novo tem 16, o mais velho 28. Da minha idade não há ninguém. Já devia ter parado há muito, mas todas as minhas amizades circulam à volta disto. E não me estou a imaginar nisto só para ver." De caminho, ensina. "Tento passar aos miúdos que a primeira pode ser a última vez, que o touro está ali para colher e para matar e que é preciso aprender a conhecer cada um. O lado para que ele corre melhor, se investe direito, se corta caminho, se marra por alto ou por baixo, e isto numa fracção d segundo. Eles acham que isto é tipo computorizado, está a ver? Que o touro vai e vem e pronto." .Um jogo sim, mas de aposta alta. "Os meus tempos livres são ir aos touros ou estar com as minhas filhas [oito meses e cinco anos] Mas quando estou com elas e com a minha mulher, se há touros em algum sítio já não estou bem. Estou ali mas não estou." Corre o país, passa a fronteira, acampa, dorme em pensões, hotéis - o que for preciso para se fazer inteiro: a areia suja, acre, a encenar arenas nas ruas, a instantânea irmandade dos que se afoitam à besta. "Chegamos a fazer viagens de mil quilómetros para ir à procura da investida de um touro puro. Cá não acontece, é tudo pelo mais barato - os touros são toureados nas corridas e andam a fazer as festas quase todas, ganham manhas. Já sabem que atrás de um capote há uma pessoa, tornam-se muito mais perigosos. Morreu um senhor na Azambuja em Maio, agora foram colhidos seis em Samora." E ele há dois anos. "Ia fazer um recorte [chamar o touro de frente e "enganá-lo" no último instante, descaindo o corpo para um dos lados para o animal passar pelo outro] mas ele não foi ao engano. Quatro cornadas, uma na perna, outra na axila, outra na barriga e outra por trás dos testículos. Só senti frio nos buracos - a adrenalina é tal que me doeram mais outras tareias que não me furaram." Dois meses para voltar a andar e muito mais para regressar: "Não recuperei a força e a agilidade que tinha. E o medo... O medo está sempre lá mas durante algum tempo não sabia se conseguia. Às tantas mandei coser a roupa toda que levava naquele dia, vesti-a e fui a uma largada fazer o mesmo passe. Para afastar os fantasmas.".A quem lhe disser que o que se faz aos touros é um tormento e uma crueldade, rebate com o sentimento. "Para mim o touro é o animal mais bonito que conheço, é como seja o melhor amigo, está a ver? A gente quer é estar em contacto com ele. Há certas festas que se fazem com touros, certas maneiras de tratar os animais com que também não estou de acordo, por exemplo aquilo que fazem em Vega, usam as lanças como os reis as usavam, e andam num pinhal a cavalo e a pé com as lanças e o touro não tem defesa possível, isso não gosto de ver. Mas respeito a tradição. Quando resolvessem o mal de toda a humanidade se calhar já podíamos olhar para estas festas que eles chamam de crueldade contra os animais.".A Catalunha e a sua proibição estremecem os adeptos portugueses, embora confiem, como Ricardo, no poder económico da indústria em Espanha ou, como Pedro Marques, "nos argumentos próprios da festa". Nascido na Marinha Grande, que reconhece não ter "um ambiente taurino", Pedro foi conquistado, muito cedo (três ou quatro anos), "pelo colorido e a música" de uma festa que conheceu ao colo do avô. "A partir daí comecei-me a aficionar. O primeiro livro que me lembro de ter lido foi As memórias de um Toureiro, de Diamantino Viseu. Sempre gostei mais do toureio a pé que a cavalo e aos sete anos consegui convencer os meus pais a levarem-me a Badajoz para ver o Vítor Mendes. Quando apareceu o Pedrito já era um pouco mais velho e comecei a segui-lo por toda a Espanha". Aos 13, escrevia num site espanhol, o www.burladero.com, exprimindo a sua admiração pelo toureiro Morante de la Puebla. "Ele disse que me queria conhecer. Vivia com aquela ideia de que o toureiro é uma figura inalcançável, via-o como um ídolo. Ainda hoje me custa a crer coisas que passámos tão bonitas. Vou de 15 em 15 dias a casa dele, é uma segunda família, não passa um dia que não falemos. Com ele conheci o mundo do toureio em Espanha, que é muito diferente do nosso. Caí em graça, talvez por perceberem que não queria nada, era só gostar daquilo." Assumindo que gasta grande parte do tempo "nisto" e que não se trata de uma paixão "barata", sobretudo pelo que gasta em deslocações e dormidas, acalenta a memória de momentos únicos que, assegura, têm de ser vividos: "A gente faz um vídeo de uma corrida que sentimos muito e quando vamos ver não está lá a magia. Nem sou muito de ter a casa cheia de coisas de tourada." E se admite que a proximidade aos toureiros o faz tapar os olhos durante um espectáculo inteiro - sucedeu em Sevilha no ano passado, com o amigo Morante a defrontar "uns touros muito complicados e perigosos, era uma corrida de grande expectativa, com bilhetes que chegaram aos 2500 euros e estive para passar o meu, tal era o medo que tinha. E não vi nada", aceita o sangue como parte da "festa". Desde as ocasiões em que o touro vence, como "no domingo passado em Sevilha, em que um toureiro levou uma cornada de setenta centímetros, ficou um charco na areia brutal" às outras, muito mais numerosas, em que está fadado a perder: "Nem consigo entender uma faena que não acabe com a morte. O touro tem todas as oportunidades ao longo da lide para demonstrar a sua bravura e o seu poder, a morte não me choca, é algo necessário para o culminar da arte.".A arte: Tânia, a quem o mestre, Vítor Mendes, repete "tu não és toureira, és toureiro", e que detesta que a tratem de modo especial por ser uma rapariga num mundo tradicionalmente masculino ("Não quero mais valias dessas"), fala d e uma "sensação única": "É o risco, a ideia de poder ser agora que vou morrer... Quando vejo o touro a passar ao pé de mim e as coisas correm bem, parece um sonho, é uma emoção tão forte. É inexplicável. Não oiço ninguém, não penso em nada. Há uma espécie d entendimento entre mim e o touro - é enganar o touro não o enganando. Percebe? Enganá-lo sendo sincera com ele.".Quanto ao que aí vem, Tânia, que esta semana arranjou trabalho - ela diz trabalho - como caixeira num supermercado, "gostava de progredir para ser matadora, nunca levei isto como hobby, sempre levei como forma de vida e como amor", mas sublinha o respeito e a humildade. "Isso depende de mim, do meu esforço, do meu valor. É impossível dizer que vou ser." Há três anos na José Falcão, onde se inscreveu quando, numa festa de touros onde foi com o padrasto, "chefe de manutenção numa empresa de lacticínios que fechou" (a mãe é "chefe da parte de embalagens de uma empresa de aquários"), descobriu que havia um sítio onde se ensinava a fazer aquilo que desde miúda admirava, Tânia sabe que "a escola de toureio não faz de ninguém toureiro". Mas tem a certeza de uma coisa: "Saímos de lá mais cultos. O meu mestre diz 'toda a gente devia aprender a tourear'. E posso dizer que tenho uma história para contar."