E se Deus fosse capitalista?

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Confesso que não vou à missa frequentemente. Sou um grande crente, mas muito pouco praticante. E isto não é bom. Convém relembrar a palavra de Deus pelo menos uma vez por semana, como ditam os cânones, e aproveitar esse espaço de tempo para, entre outras coisas, voltar a lembrar os entes queridos e rezar por eles. Infelizmente, se vamos à missa ao sábado à tarde ou ao domingo não temos outro remédio senão ouvir, além da palavra de Deus, o padre de serviço, que fala muitas vezes do que lhe apetece, ao sabor dos tempos, e que normalmente consiste num sermão inconsistente sobre os problemas da humanidade e a fórmula que considera ideal para os resolver. Como tantos crentes liberais, já me senti muitas vezes ofendido na missa, e senti um desejo imenso de pecar, de subir ao púlpito e criticar as estupidezes do padre que pronunciava a homilia. Nos tempos que correm de crise económica, abalada a opinião pública pela denúncia do crescimento da desigualdade e da desordem mundial - sem qualquer prova empírica dos factos - tive muitas vezes este impulso porque o pensamento social-democrata dominante na sociedade é a norma nos púlpitos das igrejas. Para a maioria dos padres, o capitalismo é o pior, os ricos exploram os pobres, os pobres são bons por natureza, e coisas do género ouvem-se impunemente todos os dias nos templos cristãos de todo o mundo. Poucos tiveram a sorte de ouvir um sermão que dignifique os negócios ou exalte as virtudes do mercado, e a sequência massiva de clichés contrários faz que muitos cristãos aceitem a economia liberal como um mal necessário, na melhor das hipóteses, mas com grandes dúvidas e até com problemas de consciência.

No último número da revista que dirijo propuseram-me demonstrar não só como o capitalismo é compatível com o cristianismo mas também que, além disso, é a sua obra genuína. Demonstrar que os capitalistas não estão condenados diretamente ao inferno, já que seria contraditório com o facto de terem gerado a maior prosperidade conhecida da história.

O capitalismo não surgiu na Ásia nem em África. Nem na América ou na Oceania antes da chegada dos europeus. O capitalismo foi inventado no Velho Continente. Tal como diferentes formas de socialismo e coletivismo surgiram ao longo dos séculos em diferentes partes do globo, o capitalismo não floresceu ou se expandiu até que os cristãos europeus articularam uma filosofia que defendia a propriedade privada, o respeito aos tratados e contratos livremente realizados, e as limitações óbvias ao poder político. Estas ideias desenvolveram-se na Itália e na Espanha católicas dos séculos XVI e XVII e foram, em grande parte, o resultado das viagens comerciais e do intercâmbio que começou a existir com as novas sociedades. No caso italiano, a abertura de rotas comerciais com a Ásia incentivou alguns eclesiásticos a analisar a pujante atividade económica e a prosperidade que estas trouxeram. Em Espanha, foi a descoberta da América que incentivou um grupo de religiosos a fazer grandes perguntas de índole moral. São todos os indivíduos sujeitos de direito? Pode haver justificação para os trabalhos forçados? Quem detém, em última instância, o poder político? Qual é o preço justo? Pode o rei impor impostos à vontade? É legítimo que o governante entre em défices orçamentais? Tem o rei o direito de usar a inflação como política económica?

A resposta a estas grandes perguntas foi o aparecimento da primeira escola de pensamento defensora do livre mercado e contrária ao intervencionismo governamental. Segundo o meu amigo Gabriel Calzada, católico praticante e hoje reitor da Universidade Francisco Marroquín, que tem a sua sede na Guatemala e que é um templo do liberalismo, os membros desse grupo de pensadores, muitos deles conselheiros reais, concluíram que os impostos deviam ser baixos, que o orçamento devia estar sempre equilibrado, que a inflação era um roubo encoberto, que o preço justo é o preço ao qual chegam as partes através de um intercâmbio voluntário, que os monopólios são privilégios através dos quais os favorecidos exploram as pessoas comuns, que todos os seres humanos devem usufruir dos mesmos direitos e liberdades fundamentais, e que nem o Estado nem o rei são anteriores ou estão a cima da lei. Oxalá contássemos hoje com pensadores como esses, e com partidos que defendessem este tipo de ideias!

As ideias revolucionárias destes autores católicos conhecidos hoje como os escolásticos tardios ou membros da Escola de Salamanca, em Espanha, viajaram até ao mundo protestante através de grandes autores como Hugo Grócio e Samuel Pufendorf. Em Inglaterra e na Escócia estas ideias encontraram o terreno fértil do Iluminismo. E foi assim que autores como John Locke ou Adam Smith se apoiaram nelas, muitos anos depois, para desenvolver os princípios políticos e económicos que hoje o mundo associa à origem do capitalismo. O livre mercado, o poder político limitado e a defesa da propriedade privada e dos contratos livremente estabelecidos foram invenções cristãs ligadas à filosofia tomista de um grupo de autores que estiveram dispostos a dizer o que pensavam que era correto e justo, apesar do facto de o dizerem lhes poder custar a prisão. Hoje, o Instituto Acton e o Sítio Escolástico do Instituto Juan de Mariana e da Universidade Francisco Marroquín tentam recuperar esta tradição. E fazem um grande trabalho que merece a pena difundir para refutar, como professa a esquerda, que o capitalismo se baseia no egoísmo e que é contrário ao bem comum.

Além dos resultados evidentes que o sistema capitalista teve na redução da desigualdade, da pobreza e da melhoria do meio ambiente, convém dizer que a procura do interesse próprio em que está baseado o modelo, e que serviu tão falsamente para o denegrir, inclui tudo o que traz utilidade aos indivíduos, que não é só o dinheiro, o poder ou a fama, mas também a compaixão, a generosidade e o valor. Ou será que o único interesse da madre Teresa de Calcutá não era fazer o bem ao próximo? O filósofo católico Jay Richard avisa que o talhante de que fala Adam Smith, a cujo interesse pessoal em prosperar devemos o facto de podermos comer amanhã, tem de sobrepor-se à sua ganância natural para que lhe comprem a carne a ele e não a outro e que, com o objetivo de saciar a sua cobiça, deve encontrar primeiro a forma de colmatar os desejos dos outros. Numa economia de mercado, o sucesso requer altruísmo no seu sentido mais literal. Antes de vender algo, o empreendedor deve desenhar um produto e serviço que os outros queiram, antecipando-se aos seus desejos e necessidades. Por exemplo, o segredo da Google ou da Apple está no facto de nos oferecerem algo que desejamos. Ficaram milionárias a melhorar as nossas vidas proporcionando-nos algo que não tínhamos - que muitas vezes nem sequer sabíamos que queríamos - elevando o nosso rendimento e a nossa felicidade. O cristianismo e o liberalismo económico são compatíveis? Claro que sim, por muito que digam o contrário os padres que você tem de suportar quando se aproxima da missa e até o próprio Papa Francisco, com quem, verdade seja dita, tivemos muito pouca sorte. Repare que, quando o Papa fala de questões relacionadas com os dogmas da religião que professamos o faz ex catedra, mas quando entra nos terrenos mundanos, complexos, e alguns deles desconhecidos para ele como o mercado, pode enganar-se como um socialista qualquer.

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