E se a abstenção falasse?

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"As pessoas têm medo das mudanças. Eu tenho medo que as coisas nunca mudem.". São duas frases simples do mais recente laureado com o Prémio Camões - o nosso Chico Buarque. A simplicidade destas frases mostra-nos a lucidez de quem sabe (talvez por ser poeta...) que a mudança também é evolução e que não tem de ser algo complexo. O mundo é feito também de coisas simples e uma delas é o voto. Quem vota decide e acompanha a mudança, influenciando a evolução. Votar é sobretudo um dever fácil de cumprir. Nestas eleições, tivemos até o voto antecipado em mobilidade, o fim do número de eleitor, os boletins de voto em braille, o recenseamento automático para quem reside no estrangeiro e o voto eletrónico presencial. Apesar do voto cada vez mais simples, é impossível ignorar a evolução (negativa) da abstenção. Os resultados da participação portuguesa nas eleições europeias são um bom (mau) exemplo. O grande vencedor destas últimas eleições foi mesmo, com a sua maioria cada vez mais silenciosa e perigosa, o partido da abstenção.

O afastamento entre os cidadãos europeus e o voto não é saudável para a democracia europeia. Ainda mais quando se vê novamente confrontada com o fantasma do populismo. Uma das estratégias mais recentes do mesmo é o disfarce sob a pele da normatização. Por cá, também tivemos quem quisesse dar voz europeia ao Vox espanhol, por exemplo. Mas Espanha, felizmente para todos, contrariou o provérbio e tem vindo de lá bom vento.

A Europa é um projeto de todos e para todos e é impossível concretizá-lo apenas com e para alguns. No contexto europeu, a desvinculação gradual entre eleitor e voto reforça a necessidade de políticas promotoras da igualdade, da tolerância e da coesão. Este tem sido o caminho trilhado pelo Partido Socialista e foi esta a mensagem que Portugal escolheu levar à Europa. Fundamental, também, é apelar a uma atitude didática perante a imagem que temos do projeto europeu. Portugal, por exemplo, começou a mudar para melhor desde que aderiu à UE. Nessa altura, houve quem tivesse medo da mudança. Volvidas décadas, temos de saber o quanto temos de agradecer a quem não o teve.

Para encurtar a distância entre os eleitores e o voto é também preciso recusar a campanha indigna. É certo que o esmiuçar do escândalo e o insulto acabam por trazer descrédito de ricochete a quem os semeia, como a direita certamente já se apercebeu. Mas nada disto dignifica o processo democrático. A abstenção evita-se também pelo consenso e pelo diálogo. Pelo consenso de medidas que superem o ciclo da legislatura e pelo diálogo com os cidadãos. Não deverá a democracia europeia aprofundar a ideia de Buarque e perguntar aos cidadãos o que querem que mude e que não mude e do que têm medo? Sobretudo antes que os movimentos populistas o façam.

Deputada do PS. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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