Maria Ressa. "É preciso mapear as redes que estão a espalhar fake news"
Na mesma terça-feira em que era anunciada pela revista Time como uma das Personalidades do Ano 2018, no dia 11, a filipina Maria Ressa depositava uma fiança de 60 mil pesos (970 euros) para evitar ser presa.
Desde julho, a jornalista e o Rappler, site de notícias que ela fundou e preside, têm sido acusados de fraude fiscal pelo governo, que já tentou sem sucesso cassar a licença de funcionamento da empresa.
"Querem deixar claro que vão dificultar muito a nossa vida. Já entendemos, mas vamos continuar a fazer o nosso trabalho", disse Maria, de 55 anos, em entrevista à Folha de S. Paulo.
Criado em 2012, o Rappler, como outros meios de comunicação, entrou na mira do presidente Rodrigo Duterte pela cobertura crítica da guerra às drogas - que, segundo entidades de direitos humanos, já fez mais de 12 mil mortos desde 2016.
O site e Maria viraram alvo preferencial do governo filipino, após uma série de reportagens sobre como Duterte e os seus aliados usaram contas falsas em redes sociais e pagaram trolls para disparar mensagens em massa e manipular a opinião pública.
Maria chegou a receber 90 mensagens de ódio por hora na sua conta de Facebook, incluindo ameaças de morte e estupro. A presidência filipina também cassou a licença do site e tem impedido os seus jornalistas de participar de coberturas oficiais.
Não se calar e reforçar os valores jornalísticos é, segundo Maria Ressa, a única forma de resistir ao que chama de três cês: corrupção, coerção e cooptação. "É preciso aumentar a luz. Se você fizer acordos nebulosos e não chamar a atenção para as tentativas de intimidação, você é parte do problema."
Maria atribui os problemas atuais não só ao presidente mas também às empresas de tecnologia, especialmente o Facebook, cuja rede social é usada por 97% dos filipinos.
"O grande problema é deixar que as mentiras circulem livremente nas redes sociais. É preciso mapear as redes que estão espalhando fake news, rastrear as fontes. É possível e é necessário fazer isso", disse ela em Doha, no Qatar, onde participou no debate intitulado "Como combater a demonização da imprensa".
Segundo ela, as redes sociais terão de "drenar o lodo tóxico" se quiserem sobreviver. Neste ano, o Rappler estabeleceu uma parceria com o Facebook para a confirmação de factos.
"Precisamos fazer que todos os veículos de media trabalhem juntos, porque todos serão atacados, mais cedo ou mais tarde", disse ela, na entrevista.
Ganhou vários prémios jornalísticos neste ano.
Infelizmente, expõem um momento muito difícil para o meu país e o jornalismo. Mostram que há uma batalha concreta, com custos reais e perigo para a democracia.
Em discurso recente, atribuiu as dificuldades à ação do presidente [Rodrigo] Duterte e às redes sociais. Como é que estas prejudicam o jornalismo?
Essas empresas são hoje o maior distribuidor de notícias do mundo e viraram todo o sistema de cabeça para baixo. Além de terem capturado o faturamento dos grupos tradicionais, não assumiram a responsabilidade, na esfera pública, de proteger as informações. Os seus algoritmos tratam mentiras e factos da mesma forma, o que põe em perigo as democracias de todo o mundo. Achamos que é possível limpar esse lodo tóxico e usar a ferramenta para construir instituições de baixo para cima.
Há como responsabilizá-los?
Já é possível ver uma ação forte nos Estados Unidos, com as audiências no Senado, que expuseram claramente como as redes sociais foram transformadas em armas. É importante expor como as redes sociais estão sendo usadas para controlar a narrativa política e como grupos como o Cambridge Analytica têm atuado em eleições em vários países. Os gigantes de tecnologia terão de mudar, terão de limpar as redes sociais. Não acho que tenham escolha, se quiserem sobreviver.
O presidente [das Filipinas] Rodrigo Duterte também usou as redes sociais para encorajar ataques contra jornalistas.
Encorajar não é a palavra correta. Foi um uso bastante sistemático. Assim como noutras partes do mundo, a guerra da informação começa nas redes sociais, fortalece-se no mundo virtual e depois evolui para ataques concretos. No começo eles atacaram qualquer um que questionasse as execuções extrajudiciais. Num segundo momento, passaram a atacar jornalistas de forma bastante sistemática. Depois de criar esse ambiente contra os jornalistas e o jornalismo, começaram a sufocar as empresas jornalísticas.
Duterte foi eficiente na sua tentativa de desacreditar a imprensa tradicional?
Muito. Com os chamados "trolls patrióticos", que disseminam ódio online patrocinado pelo Estado, eles conseguiram mutilar o jornalismo, fazer que o público deixasse de acreditar nos jornalistas. Assassínio de reputação era muito comum - usaram todos os animais possíveis para me xingar, zombavam da minha aparência, da minha voz. E diziam que os jornalistas críticos eram corruptos. Se você diz um milhão de vezes que alguém é corrupto, as pessoas acreditam. O nosso país deixou de ser uma democracia e passou a ser uma ditadura por meio do ódio online. Usavam a viralidade do Facebook para espalhar mentiras sobre os jornalistas. O resultado foi claro. Em janeiro de 2018, uma pesquisa do Pew Global Attitudes no mundo real mostrava que 86% das pessoas diziam acreditar que os media tradicionais eram justos e corretos. Uma pesquisa da Edelman feita com utilizadores das redes sociais mostrava que 83% não confiava nos media tradicionais.
Que tipo de medida é eficiente para se contrapor à desinformação?
O grande problema é deixar que as mentiras circulem livremente nas redes sociais. É preciso mapear as redes que estão espalhando fake news, rastrear as fontes. É possível e é necessário fazer isso. E precisamos fazer que todos os veículos de media trabalhem juntos, porque todos serão atacados, mais cedo ou mais tarde. No começo, as TV não ligavam muito aos ataques, não acreditavam que pudessem ser ameaçadas. Quando começaram a ser atacadas, juntaram-se aos outros veículos e hoje nós colaboramos no combate à desinformação. Mas não basta mostrar que algo é falso, é preciso fazer reportagens mostrando de onde vêm essas fake news, mostrar às pessoas que elas estão sendo manipuladas e como isso está sendo feito. Nas Filipinas, finalmente o Facebook começou a banir perfis, porque se deu conta de que estava perdendo usuários e anunciantes. O uso das redes sociais como arma é apenas o fertilizante para que esses ataques cresçam e passem para o mundo real, com leis arbitrárias, por exemplo.
Houve casos antes do Rappler, contra o jornal Inquirer.
Sim. O maior jornal filipino publicou em sua capa a foto de uma mulher segurando o marido morto na guerra às drogas, e Duterte voltou-se contra eles. Sob pressão, os donos do jornal foram forçados a vender o controlo a um aliado do presidente.
Em seguida ele passou a ameaçar a maior cadeia de TV do país, a ABS-CBN, dizendo que não renovaria sua licença em 2020. E depois disso, o Rappler. Tentaram cassar nossa licença e puseram em marcha ações tributárias.
Houve um gatilho para isso?
Nós não somos apoiantes nem opositores de Rodrigo Duterte. Vamos continuar a mostrar ao público que o presidente está abusando do poder para atacar os seus críticos, usando a lei e instituições como a Procuradoria da Receita para intimidar os que considera seus inimigos. É uma paranoia perigosa, pois ele está mobilizando muito poder.
O objetivo é cercear o jornalismo do Rappler?
Eles querem deixar claro que vão dificultar a nossa vida muito. Já entendemos, mas vamos continuar a fazer o nosso trabalho. Talvez essa seja uma mensagem para o Brasil. Precisamos definir qual é a linha demarcatória, a linha que define o que é democracia e o que é ditadura ou autocracia, e trabalhar para impedir que ela seja ultrapassada.
Foram surpreendidos pela escalada de pressão?
Duterte sempre foi muito claro sobre o que pretendia, mesmo antes de ser candidato. O que as pessoas não viram foi que pulamos da frigideira para o fogo. Elegemos um presidente muito forte, que abusa do poder, e não temos instituições necessárias para contê-lo. Essa é uma grande diferença entre as Filipinas e os Estados Unidos, onde o Congresso e outras instituições podem colocar Trump de volta na rota quando ele se excede.
Nas Filipinas as instituições de freios e contrapesos não conseguem atuar?
Não há freios e contrapesos nas Filipinas. O governo tem usado os três cês para tentar controlar qualquer um que questione os seus meios de ação.
Quais são os três cês?
Corromper, coagir ou cooptar. Ele toma decisões unilaterais e impõe-nas. Duterte tem apoio popular, é o mais poderoso presidente que tivemos em décadas, mais até do que Ferdinando Marcos (ditador de 1965 a 1986), porque controla o Executivo e o Legislativo e, até o fim de seu mandato, terá apontado 13 dos 15 juízes da Suprema Corte. Nesse ambiente, as companhias também são pressionadas a seguir as determinações do presidente.
O governo pressionou os anunciantes para vos boicotarem?
Na medida em que o governo nos ataca, os anunciantes têm medo de se associar a nós. Nos bastidores, dizem que nos apoiam a cem por cento, mas apoiam só de longe (risos).
Com a companhia a ser estrangulada, alguma vez chegou a pensar em recuar?
A nossa resposta tem sido reforçar ainda mais os nossos valores. As jornalistas que criaram o Rappler fizeram-no porque queriam ser independentes. Nós tínhamos valores fortes e sabíamos que, se quiséssemos continuar a trabalhar de acordo com eles, teríamos de nos preparar para isso. Fui correspondente de guerra e nós quatro sabíamos que antes de mais nada precisávamos de nos preparar, planear os movimentos. Antecipar os piores cenários, antecipar-nos às possíveis saídas. O segundo passo é que você precisa saber quem é, porque nesse ambiente haverá tentativas de corrupção, coerção e cooptação. Antes que eles viessem, sabíamos que manter o jornalismo independente era mau para os negócios. Mas, como o maior grupo na direção é formado por jornalistas, fomos capazes de mostrar aos homens de negócios como funciona o nosso mundo e convencê-los de que a melhor saída era continuar fazendo jornalismo como fazíamos. E eles concordaram em assumir riscos que geralmente homens de negócios não assumem. Por fim, aprendi que a melhor forma de lidar com isso é aumentar a luz. Se você fizer acordos nebulosos e não chamar a atenção para as tentativas de intimidação, você é parte do problema. Quando eles tentaram retirar a nossa licença, nós reagimos claramente mostrando que era politicamente motivado, e isso nos manteve em funcionamento.
Como é que os negócios estão a ser afetados?
Fomos os primeiros nas Filipinas a fazer publicidade nativa, em 2012, e, a partir daí, mudámos o nosso modelo de negócios algumas vezes. Quando estamos sob ataque do governo, os anunciantes ficam nervosos. Vimos isso e tentámos dar-lhes o que precisam, usando dados estruturados das redes sociais para prestar serviço. Estamos a estudar como criar um modelo de associação (membership), que seja sustentável num momento em que toda a publicidade digital está a ir para Google, Facebook e Amazon. Não acho que o modelo de assinaturas seja o melhor num país em que a maioria da população é muito pobre para arcar com isso.
Vê semelhanças entre Jair Bolsonaro [presidente eleito do Brasil] e Duterte?
Eu entrevistei [Rodrigo] Duterte antes da eleição e ele afirmou que se transformaria num ditador se fosse eleito e prometeu matar os utilizadores de drogas. Ele cumpriu todas as suas promessas. Portanto, tenham cuidado com Bolsonaro e as suas promessas. Dependendo da força das instituições, o vosso mundo vai virar de cabeça para baixo, como o nosso.
Entrevista originalmente publicada no DN do dia 18 de dezembro de 2018 e hoje republicada.