Porquê exatamente 1333 perguntas? Podiam ser muitas mais?._Poderiam, claro. Creio que o número de questões que os pais têm é infinito, sinal de que o processo de parentalidade é importante, intenso, dinâmico e sempre novo. É o processo mais elaborado e fantástico de uma pessoa, o que não quer dizer que quem não tenha filhos seja infeliz ou menos do que os outros. Mas se for ver, essa pessoa arranjará «afiliações» e será criativa, terá projetos - tudo equivalente a filhos, com igual número de interrogações. Assim como os médicos costumavam pedir aos doentes «diga 33», entendi que seriam os pais a pedir «diga 1333». Enfim, foi uma escolha, como tudo na vida..Quais são as questões mais recorrentes por parte de quem o procura?._Constatei, ao longo da minha prática clínica e também como pai, que as maiores dúvidas se centram na alimentação, nos comportamentos (birras, estados de alma, sentimentos, desafios), perturbações do sono, questões relacionadas com a higiene e também, felizmente cada vez mais, com os princípios educativos, valores, limites e a preparação da criança para a integração nos diversos meios onde terá de viver: a casa, a família, a escola, a sociedade. .Não foram só pais a questionarem-no. Também houve adolescentes que procuraram os seus conselhos...._Os adolescentes escrevem-me bastante, principalmente sobre áreas que têm que ver com a relação com os pais e professores, a ambivalência entre o estudar e o futuro, por um lado e, por outro, com os afetos e a vivência do dia a dia, além de questões práticas e que têm que ver com a autoimagem, a autoestima e a relação com os outros. De modo global, diria que há muita gente que ainda não percebeu bem o que é uma criança, nas suas diversas vertentes: física, emocional, psicológica e sentimental. E que as crianças não são adultos em miniatura, pelo contrário: são frágeis, inexperientes, com uma visão muito pouco sistémica da vida. Atualmente, no agrupamento em que os meus filhos estudam, vou de vez em quando dar uma aula sobre este assunto aos alunos do secundário, e eles gostam. A maioria vai ser pai ou mãe, e muitos não fazem ideia do que é o processo da parentalidade..Ter filhos passa necessariamente por ganhar alguns cabelos brancos?._Havia uma letra de um fado que dizia «cabelo branco é saudade». Neste caso sê-lo-á, mas também será resultado da experiência e de nos sentirmos vivos e lutadores. Confesso que não concebo uma vida rasteirinha, sem emoções, sempre na defensiva, sem ousar e arriscar, mesmo sabendo que se pode dar um trambolhão. Os filhos são a nossa continuidade; quase diria que a vida que eles somam e desenvolvem faz-se, em parte, à custa da nossa própria vida, dos nossos momentos, da nossa energia vital. Mas isso é bom, se a autonomia se for fazendo nos dois sentidos: a dos filhos, mas também a dos pais..Sentiu falta de ter um livro assim à disposição quando também foi pai? Ou as coisas vão ficando mais fáceis quando se tem cinco filhos?._Costumo dizer que não há um manual de instruções para as crianças, porque serão os pais que o irão escrevendo na vivência do quotidiano. E no final podem deitar fora esse manual porque, como cada pessoa é única, irrepetível e imprescindível, o manual de um não serve para os outros. O que tentei foi dar dicas, ajudar a triar e facilitar o processo de informação, que existe em quantidades monumentais mas, por isso mesmo, às vezes causa mais confusão. Quis relatar e partilhar experiências, coisa que os pais raramente têm agora, com tão poucas crianças em circulação. O objetivo dos meus livros é ajudar a construir a sabedoria, talvez a coisa mais importante que poderemos ter, porque é conhecimento temperado com bom senso, uma soma ponderada de emoção e razão..A noção de merecer o que se tem é algo que hoje faz falta às crianças? Muitos dos problemas posteriores podem decorrer dessa premissa?._Há que garantir o mínimo de condições de vida, porque isso ajuda a construir pessoas seguras e com boa autoestima, amantes da vida. Para mim, o fator mais importante é ser amado e sentir-se amado por alguém. O desamparo, o sentimento de que não fomos suficientemente importantes, de que podíamos ter desaparecido sem que nada mudasse no mundo, é terrível. Para lá disso e das necessidades irredutíveis, como condições de habitação, higiene, alimentação e ambiente favorecedor do desenvolvimento, da cultura, da identidade e da autonomia, há muitas outras coisas que têm de ser sentidas como conquistadas. As crianças têm de ter a noção de que a vida é feita de escolhas e de que essas escolhas irão determinando o futuro. Ou seja, temos mais graus de liberdade do que pensamos, mas teremos de pensar bem em como os utilizamos. O facilitismo, o não saber encarar a frustração, o nunca ouvir a palavra «não», estimulam o narcisismo e a omnipotência e fazem vir ao de cima o pior das pessoas. .Foi pai em duas viradas: aos 23 e aos 24 anos, e depois aos 46 e 47. As perguntas dos pais e dos adolescentes mudaram muito ao longo do tempo? O conhecimento geral, pelo menos, é diferente do que se tinha há 31 anos...._A vida mudou, é sabido. Eu próprio mudei, a ciência desenvolveu-se e novos dados foram surgindo. Aliás, basta pensar na evolução tecnológica para se ter uma ideia: há 33 anos não havia internet, telemóveis, micro-ondas, nem sequer televisão a cores. É natural que a parentalidade vá mudando. Contudo, os valores civilizacionais e humanistas que tentei (tento) transmitir aos meus filhos, a humildade perante a vida, o descartar do materialismo, o desenvolvimento da cultura e da estética, o apreciar da natureza, do fascínio do cérebro humano e da companhia dos outros (apesar de ser muito bom aprender a estar-se só), é exatamente igual. E perdoe-me a imodéstia, mas fico contente de ver que resulta e que eles se constroem enquanto pessoas de uma maneira que me agrada. Mérito deles, porque os meus filhos não são o meu livro em segunda edição, com nova capa e algumas gralhas corrigidas. São um livro único e próprio. Mas há a sensação de que, de alguma forma, contribuí para isso..Quais são as falhas mais comuns cometidas pelos pais ao longo do processo de crescimento dos filhos ?._É difícil generalizar e perigoso embarcar em definições arrasadoras, como a teoria dos pais à beira de um ataque de nervos. De modo geral, creio que as maiores determinantes serão a redução do número de filhos - que faz que cada um seja alvo de muito mais atenção, no que isso tem de bom e de mau -, a mudança dos paradigmas familiares e do papel da família alargada, o desenvolvimento da escola e das atividades paraescolares enquanto espaço crescente na vida das crianças e jovens, os estilos de vida muito fechados entre quatro paredes em ambiente urbano, com habitações e espaços de fraca qualidade, poluição e pouco contacto com a natureza, o mar e o campo numa perspetiva estética. Acrescentaria algum receio de traçar limites e de os fazer cumprir, de desenvolver o sentido ético, o estímulo ao pensamento e o gosto pela filosofia e pela criatividade, talvez uma das coisas que mais distingue o ser humano. .E quais são os principais conselhos que dá aos pais?._Fujo de ser conselheiro. Algumas pessoas ainda usam a expressão «o médico mandou», mas pessoalmente mando em mim e sabe Deus! Diria aos pais para estarem cientes de que são os melhores pais que os filhos podiam ter. Informem-se sem ser em catadupas de informação, mas de modo a construírem um conhecimento útil e estruturado. Usem o bom senso e, sobretudo, sejam justos, firmes, coerentes e consistentes dentro daquilo que um ser humano pode ser. Não queiram ser pais perfeitos (deve ser enjoativo), mas pais que se orgulhem de ser bons modelos, bons exemplos. E nunca se esqueçam de que os vossos filhos vos amam, e vice-versa, mas que é preciso dizê-lo sem rodeios. Não é apenas «gosto de ti» - gosta-se das coisas -, nem «adoro-te» - adoram-se os deuses. É «amo-te». Porque são as pessoas que amamos. Cultivem e ensinem os vossos filhos a cultivar uma vida intelectual e emocional inteligente, ousada, sem dar demasiada importância a narcisismos, snobeiras ou novos-riquismos. A humanidade visa a eternidade. Perder tempo com o efémero é desperdício e um atestado de estupidez..Existem maus pais?._Existem. De dois tipos: uns, raros, são os que de alguma forma maltratam os filhos tal como é tipificado na legislação. No total de pais, são casos raros. Outros, mais comuns, são os que esquecem os filhos enquanto pessoas frágeis mas autónomas, os que são claustrofóbicos e não os deixam crescer, os que exigem demasiado deles, os que não os deixam experimentar a frustração ou, perante esta, não os ensinam a acolchoá-la com fatores protetores, e os que acham que os adultos têm sempre razão e se recusam a pedir desculpa ou desrespeitam as crianças só porque são crianças. É uma forma perversa de poder. Outro exemplo do que considero um pai ou uma mãe com papel diminuto são aqueles que, por exemplo em situações de separação, não lutam pelos filhos, se contentam em vê-los de 15 em 15 dias ou apenas vão jantar com eles para despachar o frete. Fazem muito mal aos filhos. Felizmente, estes arranjam outros elementos para o puzzle-pai ou puzzle-mãe, e as figuras biológicas acabam por se reduzir à sua pequenez. Os pais narcísicos, que só pensam nos filhos enquanto «que grande pai ou mãe que eu sou por ter filhos tão lindos!» são também deficitários em termos de parentalidade. .Diz no livro que se os avós forem avós de fim de semana podem estragar os netos com mimos, caso contrário têm de ser coeducadores. Como chegou a esta conclusão? Foi algo que sentiu na pele?._Felizmente não. Mas é uma evidência: as crianças precisam de guias. Precisam de ter o seu puzzle-pai e puzzle-mãe bem definidos numa estruturação de crescimento, regras e ousadias, por um lado - o chamado polo adrenalínico da vida -, e por outro de segurança, conforto, mimo e regressão - o polo endorfínico. Acresce que há que criar regras para depois quebrá-las de vez em quando, seja com razões (as chamadas exceções à regra), seja por mero prazer de transgredir (mais raro e que não tenha efeitos secundários sobre ninguém). Os avós de fim de semana são a exceção ou transgressão: na prática, podem dar o chocolate que os pais não deixam comer no dia a dia. Já os avós que cuidam das crianças têm de ajudar a criar as regras, pelo que não podem ser os fomentadores de transgressões. É difícil pôr estes dois chapéus conforme a hora do dia ou o dia da semana, mas é necessário. E, sobretudo, não dar à criança a ideia de que se está a fazer uma santa aliança contra os pais..GOSTO PELA PARTILHA.Considerado um dos mais prestigiados pediatras nacionais, Mário Cordeiro é professor auxiliar de Saúde Pública na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, além de membro da Sociedade Portuguesa de Pediatria e da British Association for Community Child Health. Trabalha ainda como consultor em diversas organizações de pais e familiares de crianças com doença crónica e é autor de livros como Dormir Tranquilo ou O Grande Livro dos Medos e das Birras. Diz ele que escreveu este 1333 Perguntas para Fazer ao Seu Pediatra pelo gozo de refletir, de partilhar, pela sensação de que poderá ser útil. «Porque gostava que os pais sentissem menos peso sobre os ombros e tivessem mais espaço para fruir a sua parentalidade com satisfação, com a certeza de que tudo farão para criar pessoas estruturadas, decentes, honestas e respeitosas.» E isto não é quimera, é possível, avisa.