E pela primeira vez em Portugal 10% votaram feminista

Marisa teve quase os mesmos votos do que o BE nas legislativas. Mas atraiu muitos eleitores que costumam votar noutros partidos. Porquê?
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"De certeza que não votei nela por ser engraçadinha." Rita Ferro Rodrigues, 39 anos, ex-jornalista, apresentadora de TV e dirigente da associação feminista Capazes, ri, apesar de as alusões de Jerónimo de Sousa, em reação ao péssimo resultado de Edgar Silva, ao "engraçadismo" da candidata do Bloco a terem indignado. "Mas creio que muitas mulheres quiseram votar numa mulher, conheço inclusive mulheres de direita que votaram nela."

Ser mulher, porém, não pode ter sido o principal critério: "Maria de Belém também o é e teve uma votação muito diferente. No meu voto houve uma componente muito importante por ser feminista. E acho que uma mulher assumidamente feminista ter tido esta votação, uma mulher que nunca teve receio de se assumir como tal, é um bom sinal para o país." Além do feminismo, releva o facto de a considerar "uma das mentes mais arejadas dentro do próprio Bloco. Tive ocasião de confirmar isso num debate sobre igualdade em que participei com ela e no qual foi muito clara na rejeição de certas clivagens clássicas. E penso que o resultado se deve muito a ela. Não penso que tenha tido uma prestação brilhante nos debates, mas funcionou muito bem na campanha. Comunica muito bem com as pessoas, tem proximidade sem condescendência. E penso que perceber-se exatamente o que ela pensa e o que pensa ser coerente com a vida dela é muito importante também".

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Rita, filha do atual presidente da Assembleia da República, o dirigente socialista Eduardo Ferro Rodrigues, foi uma das várias "personalidades" que assumiram publicamente o seu apoio à candidata do BE e que incluíram a ex-secretária de Estado da Educação do governo Guterres Ana Benavente, assim como o escultor José Cutileiro. Votante habitual no PS, já votou BE algumas vezes. E confessa a sua curiosidade em relação ao detalhe da votação. "Estive a ver e em Berlim ela teve uma votação fantástica, foi a mais votada. Os nossos ditos "cérebros em fuga" sabem escolher. Estou com muita curiosidade em saber como se distribuiu o voto feminino e dos jovens. Porque acho que alguma coisa está a mudar em Portugal. As pessoas querem ver mulheres em cargos de decisão. E mais, em relação às declarações de Jerónimo de Sousa sobre as "candidatas engraçadinhas": se há uns anos um político dissesse algo como o que disse Jerónimo ninguém reagia; agora vejo imensa gente a fazê-lo. As pessoas começam a identificar a discriminação sexista no discurso político."

Ou a discriminação sexista tout court. Sara Póvoas, 29 anos, assistente de call center, votou pela primeira vez numa candidata que não é do seu partido, o PS, em cuja juventude milita desde os 15. "Resolvi apostar nela por ser jovem, ser mulher, por ser sangue novo e por ter gostado do discurso dela. Ser mulher é importante. Porque Portugal ainda tem de fazer muito em termos de direitos das mulheres." Inclusive no PS: "Não vou usar a palavra machista, mas em relação às mulheres o meu partido é estranho." Deteta outras estranhezas no PS: "Acho que foi extremamente desorganizado nisto de não ter um candidato. Ainda ponderei votar Sampaio da Nóvoa mas achei que por uma vez ia apostar numa coisa diferente, que me trouxesse uma mudança em relação àquilo que faço nos atos eleitorais todos. E confesso que o discurso do BE me tem cativado um pouco nos últimos tempos. Já tinha acontecido nas legislativas, mas votei PS." A desorganização do partido aliás terá contribuído para que a sua família, habitualmente PS, "se dividisse toda": "O meu pai votou como sempre, mas a minha mãe votou no Marcelo e eu na Marisa." E se não sabe bem que efeito útil teve o seu voto - "não sei se votar nela traz alguma mudança" - sente que pelo menos lhe trouxe a satisfação de ter contribuído para a grande surpresa das presidenciais: "Em bom rigor, o facto de ela ter muito mais do que aquilo que se esperava já é na minha opinião uma mudança. Creio que teve um resultado que ninguém esperava, foi uma das grandes vencedoras, e isso significa a meu ver que as pessoas estão a querer mudar, a procurar saídas, opções. E sinto assim que o meu voto já contribuiu para alguma coisa."

"O BE não é para aqui chamado"

O facto de o resultado das eleições parecer à partida decidido e de o efeito "voto útil" num candidato que pudesse derrotar Marcelo não se propiciar à primeira volta terá permitido a muitos eleitores, mesmo entre militantes partidários ou simpatizantes desta ou daquela força, fazer como Sara: votar em inteira liberdade, sem preocupação com contas nem lealdades. Afinal, supostamente, o importante para a existência de uma segunda volta era votar em qualquer um que não o prospetivo vencedor.

Assim foi com o escritor e poeta Eduardo Pitta, 66 anos, que nunca na vida, assegura, votou no BE: "Voto sempre no PS ou em candidatos apoiados pelo PS." Mas considera que o seu partido "habitual" teve "um comportamento completamente desastroso nestas presidenciais; Costa foi inteligente em distanciar-se." Vendo Sampaio da Nóvoa como "uma candidatura muito artificial: era o candidato do Livre, nunca me convenceu. Aliás se houvesse segunda volta entre Marcelo e Nóvoa, eu não ia votar" e não querendo "votar contrariado num candidato em que não acreditava, nem na Maria de Belém que teve uma declaração de voto contra o casamento de pessoas do mesmo sexo [Eduardo é casado desde 2010 com Jorge Neves, com quem vivia há décadas]", andou muito tempo a pensar votar em branco. "Mas depois comecei a ouvir a Marisa, a gostar do que ela dizia. Informei-me sobre o percurso dela, e gostei. No fundo, ela convenceu-me. Havendo um deserto do outro lado, a personalidade dela impôs-se. Foi o discurso dela, a postura dela; o BE não é para aqui chamado. E votei com toda a convicção." Assegura conhecer "muito mais gente nestas circunstâncias, tudo burgueses que oscilam entre PS e PSD". Marisa, prossegue, "sensibilizou imensa gente, é ver como em todos os distritos andou nos 10%, não só nas grandes cidades. Tenho amigos de direita, direita mesmo, que votaram nela. As pessoas gostam dela. E se para mim não pesou nada o facto de ser mulher, acho que as mulheres sentiram muito esse apelo. Começam a sentir que se não forem elas a puxar por elas, nunca mais."

Isso mesmo parece ter pesado também na decisão de Sandra Aguiar, 41 anos, diretora financeira numa firma minhota. "Nesta campanha sinceramente eu não tinha ninguém em quem votar - se Guterres se tivesse candidatado votava nele de olhos fechados - e pensei: mal por mal voto numa mulher. Tinha escolhido a Maria de Belém, mas perdeu o meu voto com a questão das subvenções. A Marisa era a outra pessoa em quem podia votar. Tirando elas só o Tino." Habitualmente votante no PS, nos últimos atos eleitorais tem votado BE. Mas não foi isso que a levou a votar Marisa. "A campanha foi um bocado pobre, os debates foram ridículos. Ou votava por palhaçada ou votava em alguém que me desse satisfação. E acho que está na altura de Portugal ter uma mulher como PR. Não sinto tanto o ser feminista ou não, mas acho que vivemos num mundo muito machista. A Marisa ainda é muito nova para ser PR e numa segunda volta teria dificuldade em votar nela. Mas teve um resultado merecido, foi dos poucos candidatos que se destacaram positivamente em campanha."

"Impoluta", aldeã e mulher

Habitual votante no PCP e por vezes também no BE - "voto sempre à esquerda" -, o ator Gonçalo Wadington, 38 anos, considera que o candidato comunista "era muito fraco" e Nóvoa pareceu-lhe "uma invenção". Ainda assim, sublinha o facto de ser mulher como a principal razão para ter escolhido Marisa. "Há muito tempo que acho que é preciso mais mulheres no poder." Isso e o facto de "haver algo de impoluto nela, não sei explicar - e ser uma pessoa muito combativa, de ideias muito claras."

O clique que decide o voto pode no entanto vir de algo tão incidental como ver a candidata na TV na sua aldeia natal. Com Fernando Barreto, 70 anos, reformado de mediador imobiliário, contumaz votante socialista de Gaia, foi assim. "Senti-me bem ao ver Marisa no único momento de campanha que vi nas TV. Único mesmo, dos outros nada de nada. Ela estava então na aldeia, falou com amigos e família, e eu, que fui parcialmente criado na aldeia, disse para mim: voto nela!" A motivação passou também por querer que o BE tivesse melhor resultado do que o PCP, e que Marisa ficasse próxima "da candidatura anedótica de Maria de Belém." Aí, comenta, "saiu-me o jackpot!"

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