E os portugueses descobriram que, afinal, Salazar era mortal
No dia 7 de Setembro de 1968, o País era surpreendido com um simples boletim médico lido aos microfones da Emissora Nacional:
"Em consequência de uma queda na sua residência de Verão, no Estoril, o Sr. Presidente do Conselho apresentou sintomas que levaram o seu médico assistente a recorrer à colaboração de dois colegas neurocirurgiões. Sua Excelência foi operado esta noite a um hematoma, sob anestesia local, encontrando-se bem."
A idade do paciente (79 anos) e o facto de, pela primeira vez, oficialmente, se referir uma questão de saúde de Salazar devem ter feito muitos portugueses duvidar da eternidade do ditador. As três semanas seguintes foram decisivas. No final, o país mudara de dirigente e de algum pessoal político dominante e a sacralização do poder perdera-se definitivamente: o Pai Tirano, severo mas protector (segundo a iconografia oficial e alguns filmes da época de ouro da comédia à portuguesa), dera lugar ao sorriso afável, tanto quanto possível próximo, do Professor cujos alunos louvavam a competência mas criticavam a rigidez das formas. Seria essa rigidez que viria a perdê-lo seis anos mais tarde.
Em 1968, há 40 anos, Portugal já não era o "paraíso triste" que Saint-Exupéry adivinhara no início da II Guerra, esse território falsamente neutral em cuja capital se acotovelavam judeus em fuga da barbárie nazi e espiões de todas as pátrias e convicções. Era, nesse final da prodigiosa década de 60, um país cinzento, a cuja miséria parte da população fugira procurando salvação em França ou na Alemanha. Um país de biscates e tentações - que o cinema tão bem fixou, de Verdes Anos a Belarmino -, de renúncia e pequenos heroísmos quotidianos, que a imprensa pouco retratava e cujos ecos é hoje necessário resgatar de poemas (Sophia de Mello Breyner, Alexandre O'Neill) ou romances (Carlos de Oliveira, Cardoso Pires).
A América ardia, no Vietname ou em casa, por causa da guerra. Na Paris cercada de bidonvilles onde se amontoavam os emigrantes, estudantes procuravam a praia debaixo da calçada. A França que se aborrecia (Pierre Viansson-Ponté no Monde a 15 de Março) acordava sobressaltada com as exigências impossíveis dos seus filhos. Em Praga, a utopia chamava-se "socialismo de rosto humano". Duraria o tempo de uma fugaz Primavera, para morrer sob as lagartas dos tanques do Pacto de Varsóvia e renascer no fogo com que se imolou Jan Palach, o estudante que se sacrificaria em nome da História.
Em Lisboa, o ano quase começara com o primeiro protesto público contra a guerra. Em 21 de Fevereiro, um punhado de estudantes marchara do Liceu Camões até à embaixada americana para dizer não à guerra... do Vietname. Um pretexto literário. A cidade de Orão atacada pelos ratos na Peste, de Camus, era metáfora de Paris ocupada pelos alemães; a Florença mussoliniana de A Cidade das Flores, de Abelaira, ocultava a Lisboa salazarenta, menos violenta mas igualmente sufocante. O protesto contra a intervenção americana no Vietname era, afinal de contas, uma recusa da guerra colonial.
Os ecos do mundo chegavam cá esbatidos, mas as novas gerações já escolhiam a vida a cores, contrariando o aviso daquele professor da Faculdade de Direito que, no primeiro dia de aulas, aconselhava a indumentária apropriada aos alunos: "Os senhores devem vir sempre de gravata, que é sinal de respeito, e de fato cinzento, que é a cor que mais convém à função discente."
Esse mundo estava a ruir. Às 20 horas de 26 de Setembro, o Presidente da República dirigia uma mensagem à Nação. Anunciava a demissão de Salazar, gravemente doente, e a sua substituição por Marcelo Caetano, "um europeu cem por cento", como lhe chamava o Financial Times.
"Não quero ver os portugueses divididos como inimigos", disse Caetano no primeiro discurso, o que abriu a efémera "Primavera marcelista". Mas havia a guerra. Para avançar no seu novo caminho marítimo, agora para a Europa, o regime tinha de acabar com ela. Não conseguiu. E foi a guerra que acabou com o regime. |