É muito difícil escapar à enorme sombra de Tolkien
O escritor, ensaísta e professor C.S. Lewis, amigo e colega de Tolkien, deixou escrito numa carta de 1959, quatro anos antes da sua morte, enviada à BBC, que se "opunha absolutamente" à adaptação à televisão ou ao cinema de As Crónicas de Nárnia, a sua saga de fantasia em sete volumes.
Lewis explicava que a visualização dos animais antropomórficos que povoam o mundo mágico de Nárnia redundaria "numa palhaçada ou num pesadelo". E acrescentava "Os desenhos animados (se ao menos [Walt] Disney não combinasse tanta vulgaridade com o seu génio) seriam outra coisa."
O autor de The Screwtape Letters não teria gostado de saber que foi precisamente a Disney que comprou os direitos cinematográficos da série aos curadores do seu espólio. Nem que o primeiro filme a ser feito é de imagem real (já existiam seis versões animadas e "reais" para TV de vários dos livros), embora realizado por um homem vindo dos desenhos animados Andrew Adamson, responsável pelos dois Shrek, que assina As Crónicas de Nárnia O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa.
MUNDO PARALELO. A história passa-se em Inglaterra, durante a II Guerra Mundial. Os quatro irmãos Pevensie são evacuados de Londres durante os bombardeamentos alemães e enviados para uma mansão no campo, propriedade de um velho e excêntrico professor.
Um dia, a irmã mais nova descobre que um velho guarda-roupa é a porta de entrada para o mundo paralelo de Nárnia, povoado por animais falantes e criaturas da mitologia celta e grega, e está escravizado por uma feiticeira que o amortalhou num Inverno permanente. Os irmãos são acolhidos como os libertadores de Nárnia e seus futuros monarcas, com a ajuda do nobre leão Aslan, mas um deles vende-se à feiticeira dos gelos, a troco de uma caixa de Delícias Turcas.
As Crónicas de Nárnia é uma das grandes apostas de fim de ano da indústria cinematográfica americana, e surge na sequência lógica do gigantesco sucesso de O Senhor dos Anéis, como o próximo filão deliteratura de fantasia a ser minerado pelo cinema. O filme até foi rodado na Nova Zelândia, tal como a trilogia de Peter Jackson, e os efeitos especiais estiveram a cargo da mesma companhia, a Weta.
Apesar do respeito de Adamson pelo livro de Lewis; do argumento não fazer pesar o lado de alegoria cristã da história (o autor era um agnóstico convertido ao anglicanismo pelo católico Tolkien); dos efeitos especiais serem discretos e serviçais em vez de intrometidos e invasores como os de Harry Potter; e do apuro da produção, em especial a figuração dos animais falantes (Liam Neeson "fala" por Aslan) e das criaturas mitológicas, A Crónicas de Nárnia tem contra si o facto de aparecer nos cinemas após O Senhor dos Anéis.
A comparação com a trilogia de Peter Jackson é inevitável e incontornável. E é claro que As Crónicas de Nárnia sai a perder. A fantasia de CS Lewis é menos fertilmente imaginativa e bastante menos complexa do que a de Tolkien, muito menos épica e arrebatadora e muito mais infanto-juvenil, além de não fazer uma ligação tão profunda ao nosso inconsciente colectivo como O Senhor dos Anéis. E após termos visto a Terra Média em todo o seu esplendor nas telas, Nárnia sabe-nos a pouco.
O projecto de a Disney filmar os sete volumes de Nárnia depende, assim, da capacidade de O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa conseguir sair de debaixo da sombra de O Senhor dos Anéis e vingar nas bilheteiras.Mas a sombra de Tolkien é longa, pesada e muito ingrata.