Nathan Thrall: "É mais possível criar hoje um Estado palestiniano do que há dois meses"
Enquanto americano a viver em Jerusalém, identifica-se como um "judeu crítico de Israel". Depois do ataque do Hamas a 7 de outubro, tornou-se mais difícil ser crítico de Israel? As posições ficaram ainda mais extremadas?
Sinto isso de forma muito forte. Há uma polarização total que ocorreu desde 7 de outubro. E há uma inabilidade quase total das pessoas para encaixarem duas verdades nas suas mentes ao mesmo tempo. Foram cometidos crimes de guerra a 7 de outubro. E estão a ser cometidos crimes de guerra em resposta ao 7 de outubro. E tudo isto está a acontecer num sistema de profunda injustiça que dura há décadas. Para as pessoas, considerar tudo isto ao mesmo tempo é quase impossível. E mal alguém fala de décadas de um sistema de injustiça, é logo acusado de estar a defender o assassínio de civis a 7 de outubro. É muito difícil ter uma conversa histórica, real, honesta e matizada, sobre Israel e a Palestina neste momento.
Perante tanto extremismo, o campo da paz em Israel, se ainda existir, vai ser mais importante do que nunca para encontrar uma solução para o futuro?
Sem dúvida que ainda vai haver um campo da paz, mas não sei que importância vai ter. Acho que o centro em Israel vai ser muito mais importante. Esse centro, que saiu às ruas em grande número nos últimos seis meses contra a reforma judicial, esse grupo andava a ignorar a questão palestiniana, porque era muito fácil ignorar a questão palestiniana. Se viver em Telavive, não tem sequer de pensar nisso. E uma das razões pelas quais este sistema de injustiça durou tanto tempo é que os israelitas comuns não têm de se confrontar com ele. E quando acontece, é de forma muito compartimentada: durante o serviço militar, ou durante os anos em que os filhos ou filhas estão a servir na Cisjordânia. Mas, neste momento, este centro pensa que a questão palestiniana é a mais importante que enfrentam enquanto sociedade, que enfrentam pessoalmente em termos da segurança dos seus filhos ou netos. E essa é uma mudança enorme. Nas últimas eleições em Israel a questão palestiniana foi marginal. Agora vai estar no topo da agenda. E isso cria novas oportunidades, porque havia coisas que, antes, não podiam ser feitas porque os israelitas simplesmente não queriam saber, não havia motivação para agir. O que "agir" significa é que ninguém sabe. Podem ser passos unilaterais que Israel vai dar. Mas pode assumir outras formas. Portanto, o campo da paz vai ser importante para gerar ideias, mas é o centro que realmente mudou em Israel. E vai ser essencial na hora de tentar encontrar novas disposições. Porque uma coisa com a qual todos os israelitas concordam é que o sistema que estava em vigor antes de 7 de outubro não estava a funcionar.
Portanto, o gerir do conflito que existia antes vai deixar de existir? Depois do que aconteceu os israelitas vão ter de olhar para o outro lado do muro ou da vedação?
Duas coisas diferentes. Uma é a capacidade para ignorar o que Israel está a fazer do outro lado do muro. Outra é a política geral de gerir o conflito. Que significa tomar toda a espécie de medidas, que podem variar ao longo do tempo, mas que, em termos macro, são medidas que mantêm a ocupação. Portanto penso que o resultado mais provável é que a ocupação vai continuar durante muito tempo. E faça Israel o que fizer agora, para tentar fazer as coisas de forma diferente, não será suficiente. Não vai criar um Estado palestiniano. E a única coisa que pode funcionar a longo prazo, para um cessar-fogo robusto, seria a criação de um Estado palestiniano. Penso que é mais possível criar hoje um Estado palestiniano do que era há dois meses. Mas não aposto nisso.
Para isso seriam necessárias mudanças políticas em Israel...
Definitivamente.
Mas também mudanças políticas do lado palestiniano.
E seriam necessárias mudanças políticas na América também.
Mas acha que as mudanças que se antecipam na América podem ser positivas para o conflito israelo-palestiniano. Neste momento tudo indica que vamos ter novo embate entre Joe Biden e Donald Trump. Trump seria uma solução melhor?
Não acho. Mas acho que há coisas novas a acontecer na América. Até agora a única coisa com que os presidentes norte-americanos tinham de se preocupar era em não serem suficientemente pró-Israel. Não tinham de se preocupar por poderem pagar o preço de serem maus com os palestinianos. Só tinham de se preocupar com todas as forças pró-israelitas que os iam acusar de não ser suficientemente pró-Israel. Agora, pela primeira vez, existe pelo menos a ameaça de que muitas pessoas que votaram em Biden, sobretudo árabes americanos, que veem os EUA como totalmente cúmplices do que está a acontecer em Gaza, não votem nele. Talvez não votem de todo. Talvez votem noutra pessoa. Mas há o risco de não votarem nele e que isso tenha consequências, por exemplo, em estados como o Michigan que é muito importante. Esta é uma grande mudança na política norte-americana. Portanto há grandes mudanças a acontecer. E há uma grande divisão geracional na América, também. Os mais jovens são mais pró-palestinianos do que os mais velhos. Infelizmente os mais jovens não votam muito.
Estávamos há pouco a falar da liderança palestiniana. Para o futuro, o Hamas não parece uma opção aceitável para Israel, Mahmoud Abbas está velho, mas a Autoridade Palestiniana parece incapaz de lhe encontrar um sucessor. Qualquer solução terá de esperar pela próxima geração de líderes?
Não concordo com essa ideia. Concordo que Abbas perdeu legitimidade e que o mundo não vai aceitar um Governo do Hamas. Mas acredito que se for para criar um Estado palestiniano não seria preciso esperar por uma nova geração de líderes, que poderia haver uma integração de todas as fações palestinas na OLP e poderíamos ir a eleições, e que seria possível formar um Governo de tecnocratas, como os palestinianos já fizeram algumas vezes nestes processos de reconciliação.
E acredita que as várias fações palestinianas chegariam a um acordo?
Se houvesse o estabelecimento de um Estado palestiniano, sim, acredito. Para isso estariam dispostos a sacrificar muito. Mas se a proposta for apenas para se integrarem, para que todos possam estar na Autoridade Palestiniana e trabalhar para Israel ao controlar as suas populações para manter um sistema de ocupação eternamente, isso não é atrativo. Especialmente quando todos podem olhar e ver o que se passa. Qual é a popularidade do Hamas hoje? É três vezes maior do que a da Fatah e está a crescer. Comparada com a da Autoridade Palestiniana é oito vezes maior. Estas pessoas que vivem sob ocupação veem o seu próprio Governo trabalhar para proteger outras pessoas, trabalhar para proteger os israelitas. Perde toda a legitimidade. Portanto, se pedirmos à OLP para integrar o Hamas neste sistema, isso significa para o Hamas perder toda a sua popularidade e toda a sua legitimidade - nem pensar. É esta a conceção do Ocidente quando fala de unificação palestiniana.
Daquilo que viu e conhece, a solução de dois Estados é a melhor para o futuro, melhor do que um só Estado ou que uma confederação, como também se fala?
Eu acho que a solução de dois Estados é profundamente injusta. No território da Palestina histórica temos sete milhões de judeus e sete milhões de palestinianos. A vasta maioria destes palestinianos não têm direitos cívicos básicos. E se construirmos uma solução de dois Estados, como é que vai ser? A solução de dois Estados implica que uma parte, a metade judia, fica com 78% do território, contíguo, e que terá um verdadeiro Estado soberano. Enquanto os palestinianos ficam com duas partes desconectadas, Gaza e a Cisjordânia, que correspondem a apenas 22% do território para metade das pessoas. E nem sequer seria totalmente soberano, e teriam de retirar partes para os grandes colonatos e nem ficariam com a totalidade de Jerusalém Oriental, que é território ocupado, etc., etc., etc. Essa solução é tremendamente injusta. Mas é a solução que a comunidade internacional apoia, a que a OLP disse que aceitava. Até o Hamas disse que aceitava se o povo palestiniano a aceitasse. E se olhar para os judeus israelitas, são muitos mais os que apoiam esta solução do que a de um só Estado. Se me perguntar, a igualdade seria uma solução muito mais justa, mas é uma solução muito menos realistas.
Voltando a si. O que o levou a deixar os EUA e ir viver para Israel?
Em 2010, eu trabalhava como editor na New York Review of Books e escrevi um artigo sobre as forças de segurança palestinianas estarem a ser treinadas pelos EUA para ajudarem Israel a manter o controlo na Cisjordânia. Quando o artigo foi publicado, o International Crisis Group ofereceu-me trabalho e perguntaram para onde gostava de ir. Eu disse que gostava de ir para Gaza. E fui, durante um período experimental. Vivi lá mês e meio. Eles gostaram do que escrevi e meses mais tarde mudei-me com a família para Jerusalém. Foi uma questão profissional. Mudei-me para lá e fiquei. Trabalhei para o International Crisis Group durante uma década e agora é ali a minha vida.
O seu livro Um Dia na Vida de Abed Salama foi editado dias antes dos ataques de 7 de Outubro. Já voltou a casa depois disso?
Não, não vou lá desde 30 de setembro. Mas vou voltar agora.
Com a sua família em Israel e o Nathan longe, como reagiu ao que aconteceu naquela madrugada?
Fiquei a saber através da minha mulher. Ela estava em casa com as crianças e mandou-me uma mensagem de voz no WhatsApp com as sirenes e disse que estava a acontecer alguma coisa. Fui logo aos principais sites de notícias mas não tinham nada. Fui ao Twitter, mas não havia vídeos, nada. Foi mesmo no início. Continuei à procura e vi os primeiros vídeos, ainda antes das primeiras notícias. Vídeos de grupos de militantes do Hamas a entrar em camiões nas comunidades israelitas na fronteira com Gaza. Fiquei chocado com aquelas imagens, porque ninguém imaginava que podia acontecer. Era uma verdadeira invasão a partir de Gaza e foi óbvio, para mim, que estava perante algo de uma magnitude como nunca tínhamos visto e que a resposta de Israel também seria algo inédito.
No seu livro conta como todos os dias passava ao lado da vedação que o separava da aldeia de Abed Salama e nunca tinha verdadeiramente olhado para o outro lado. Muitos israelitas preferem não olhar para o outro lado do muro?
Sem dúvida. Não só preferem não olhar, como é muito fácil. Em Jerusalém é mais difícil, porque se vive mesmo encostado ao muro e conseguimos, pelo menos, ver as comunidades palestinianas do outro lado. Mas onde no centro do país, não se vê nada. A longevidade do sistema depende da capacidade de ignorar o que está a acontecer.
Agora tornou-se cada vez mais difícil ignorar o que se passa.
É verdade. Por isso o 7 de Outubro é tão significativo, porque forçou os israelitas a não ignorar. E isso vai ter enormes consequências políticas.
Vemos que há reações muito diversas. Reações violentas como temos visto na Cisjordânia, com colonos a atacar palestinianos, mas também por surgir a vontade de encontrar uma solução para aquelas pessoas ali tão perto?
Acho que ainda é muito cedo para sabermos. No meio de uma guerra ninguém vai propor compromissos sérios. Mas quando a poeira assentar, vai haver uma discussão sobre como vamos implementar um novo sistema que garanta que o 7 de Outubro não se vai repetir
Israel tinha um Governo muito muito à direita, agora tem este Governo de união...
Continua a ser muito à direita.
Acredita que as consequências políticas do que está a acontecer não vão ser uma radicalização ainda maior, as pessoas vão ficar mais moderadas e procurar o centro?
Todas as sondagens mostram que há, nos partidos, um movimento para o centro. Dito isto, onde é que fica o centro? Hoje o centro acredita - e antes talvez fosse bastante mais cético quando a isto - em todos os temas de discussão da direita: que nos odeiam, porque são antissemitas, não por causa da ocupação, que nunca nos vão aceitar. Que não há solução, que a única hipótese é mantê-los subjugados para sempre. O problema é que mesmo que acredite em tudo isto, o modelo de os manter subjugados para sempre não garante a segurança. No fundo, estas pessoas querem estar seguras. Esmagar Gaza, causar danos centenas de vezes piores do que das outras vezes, não é a resposta. Todos sabem que isso só vai resultar em mais guerra. A única coisa que eu acredito que possa mudar algo é fazer uma coisa radical, como criar mesmo um Estado palestiniano.
Isso é possível enquanto Israel continuar a construir colonatos na Cisjordânia? Porque é que continua, mesmo contra a oposição da comunidade internacional?
Porque esta só é contra em palavras, não em atos. Se toda a gente na Europa concordasse que vai contra a lei internacional, que são crimes de guerra, o mínimo que podiam fazer era boicotar os produtos vindos dos colonatos. Mas nem essa medida básica existe. Dizer que o mundo é contra, eu colocaria uma ressalva porque até agora não houve qualquer recuo em relação a Israel. Portanto há uma parte muito forte e uma muito fraca. A parte forte fica com o que quer e o mundo limita-se a acenar. Israel quer expandir-se, por isso está a expandir-se. E fá-lo com Governos de esquerda e com Governos de direita. Expandem-se porque queriam um Estado judaico do rio até ao mar. E esperam que os palestinianos emigrem e a situação se resolva por magia. Enterram a cabeça na areia porque os palestinianos não vão a lado nenhum.
Antes de 7 de outubro, Israel parecia no caminho para normalizar as relações com os países árabes vizinhos, através dos Acordos de Abraão. Agora receia-se que o conflito alastre. A ameaça é real?
Com certeza. É um grande risco e é a principal preocupação dos EUA. Parte da razão para os EUA estarem a apoiar Israel em Gaza é porque a sua verdadeira prioridade é garantir que Israel não começa a bombardear o Líbano. Nos bastidores o que eles dizem é: "Não bombardeiem o Líbano, nós não queremos uma guerra com o Irão, não queremos uma guerra com o Hezbollah." Israel evacuou as localidades na fronteira norte. Há dois porta-aviões dos EUA no Mediterrâneo para a eventualidade de haver guerra com o Hezbollah e o Irão. O primeiro-ministro de Israel já disse que gostava de ver os EUA envolvidos numa guerra com o Irão, que travassem essa guerra por Israel. Há, neste momento, uma oportunidade sem precedentes para iniciar essa guerra. Há uma grande tentação, da parte de Israel, eles pensam: "Vai acontecer mais cedo ou mais tarde. Pelo menos agora já evacuámos as localidades no Norte. Já mobilizámos centenas de milhares de reservistas, muitos estão no norte. Já temos um pretexto." Todos os dias há trocas de tiros entre Israel e o Hezbollah. E temos os EUA prontos a intervir se houver guerra. Não diria que é mais provável acontecer do que não, mas há uma grande tentação.
Então a grande questão é o Irão. Mas com toda a pressão sobre os EUA, estes apoiariam Israel numa guerra com o Irão agora?
Acho que os EUA apoiariam, por isso a tentação é tão grande. Foi a razão para os EUA enviarem dois porta-aviões para o Mediterrâneo - mostrar que estão com Israel e que vão participar se houver uma guerra com o Irão.