O estado do SNS é um dos temas da ordem do dia. As classes profissionais protestam e reivindicam, a oposição fala em "caos" e o Governo em desafios. Qual é a sua visão?.O estado da Saúde em geral e do Serviço Nacional de Saúde (SNS), em particular, não é positivo, é preocupante, que resulta, em parte, da pandemia e do esforço que foi preciso alocar ao combate à covid-19 e à resolução dos problemas associados a este contexto, mas também muito do estado complicado em que já se encontrava no período pré-pandemia. Neste momento, temos um SNS a demonstrar muitas fragilidades, do ponto de vista das estruturas e dos recursos humanos, e com grande dificuldade em dar resposta. Portanto, eu diria que o SNS está longe de estar em condições para responder a todas as necessidades da Saúde em Portugal, com uma agravante, que é a situação de guerra na Europa, que ainda vai obrigar a um esforço maior, a nível estrutural e dos custos..Os farmacêuticos têm sido uma classe silenciosa, mas recentemente profissionais dos hospitais do SNS assinaram escusas de responsabilidade pelas falhas que possam surgir nos serviços, devido às condições em que trabalham. Isto quer dizer que atingiram um limite?.É verdade. É uma situação que nunca tinha acontecido na história da profissão, o que é um sinal de alarme sobre o que os profissionais querem relativamente às condições de trabalho. É uma posição que está em linha com o que disse anteriormente: a Saúde em Portugal e o SNS vivem uma situação preocupante..Mas porquê só agora esta tomada de posição?.Os farmacêuticos do SNS debatem-se com um conjunto de dificuldades que vem de há muito. Foi-lhes pedido um grande esforço durante a pandemia, ao qual responderam de forma assinalável. Os farmacêuticos estiveram sempre na linha da frente, nunca houve dificuldades de acesso aos medicamentos, quer nos hospitais quer nos cuidados primários, e a verdade é que estes serviços têm cada vez mais dificuldade em funcionar adequadamente, pela falta de recursos humanos. Neste momento, há farmacêuticos a reformarem-se e outros a abandonar o SNS porque já não toleram as condições de trabalho que lhe são oferecidas. É preciso não esquecer que os farmacêuticos têm um leque variado de saídas profissionais - por exemplo, há muitos que trabalham nos ensaios clínicos nos hospitais e que agora estão a sair para trabalhar na mesma área na indústria farmacêutica, onde ganham muito mais. Mas além da remuneração há uma outra questão que está a afastar os farmacêuticos dos hospitais.CitaçãocitacaoOs serviços farmacêuticos hospitalares têm cerca de 1000 farmacêuticos, mas um levantamento junto dos diretores de identifica que são precisos mais 250 a 300 farmacêuticos..Qual?.É a questão da carreira farmacêutica no SNS, aprovada recentemente, com três especialidades: Farmácia Hospitalar, Análises Clínicas e Genética Humana. É uma carreira muito bem vinda e que há muito era esperada pela classe, mas a forma como está na legislação blinda completamente a entrada de farmacêuticos nos hospitais de forma a poder-se colmatar as necessidades imediatas de recursos humanos. A lei diz que para entrar na carreira do SNS os farmacêuticos têm de fazer quatro anos de internato, após este têm de fazer um exame de saída e a partir daí é que entram na carreira farmacêutica. Ou seja, só daqui a quatro anos, no mínimo, é que teríamos o primeiro farmacêutico formado de acordo com estes critérios, o que é inaceitável, porque não permite colmatar as necessidades de agora. E temos farmacêuticos que, neste momento, já têm a formação que é exigida pela lei. Estes não deveriam ter de começar do zero..Fizeram alguma proposta ou estão em negociação com a tutela para resolver isto?.Fizemos uma proposta à Sr.ª ministra e estamos à espera de resposta relativamente às alterações que propusemos à legislação. É preciso criar condições para que os farmacêuticos especialistas, já com a formação que é exigida na carreira do SNS, que queiram servir nos hospitais públicos possam entrar, não tendo que fazer quatro anos de internato e um novo exame. É um assunto que tem de ser resolvido urgentemente, porque os serviços no SNS estão a degradar-se. Daí, os pedidos de escusa de responsabilidade..Faltam muitos profissionais?.Neste momento, os serviços farmacêuticos hospitalares têm cerca de 1000 farmacêuticos, mas há pouco tempo fizemos um levantamento junto dos diretores de serviço das várias unidades do SNS e as necessidades identificadas é de que são precisos mais 250 a 300 farmacêuticos. Não são as necessidades para o futuro, são para agora. Ora isto explica que os próprios hospitais comecem a degradar os seus serviços. Se não há farmacêuticos não há condições para assegurar adequadamente as funções farmacêuticas. A forma como a lei está desenhada não é benéfica para o próprio SNS, não ajuda a resolver o problema da falta de recursos nesta altura. E nenhum hospital vive sem serviços farmacêuticos. É fundamental que os políticos percebam isso..Mas a população tem noção do papel dos farmacêuticos no sistema de saúde?.O papel dos farmacêuticos, quer hospitalares quer das farmácias comunitárias, como das análises clínicas ou na área da investigação, é fundamental. Talvez a população não tenha esta noção, porque tem sido uma classe discreta, mas basta pensar no que lhe disse: "Nenhum hospital vive sem medicamentos". Este circuito é assegurado pelos farmacêuticos. São eles que garantem o acesso do doente aos medicamentos e têm de o fazer com qualidade e segurança. Mas para além de garantirem esta função têm outras, como a preparação de medicamentos específicos para cada doente, a preparação da nutrição parentérica - se calhar os doentes nunca questionaram como é preparada a nutrição que lhes aplicada na veia e esta é da responsabilidade de um farmacêutico hospitalar, que a tem de preparar em condições técnicas e cientificamente muito exigentes - ou a preparação dos medicamentos para a área oncológica, que são diferentes para cada doente, tendo em conta as características individuais. Se deixarmos de ter condições para fazer essas intervenções ou se não conseguirmos que sejam feitas de forma adequada temos um problema com reflexos gravíssimos nos doentes. É isto que temos de evitar..Considera que a classe tem sido ignorada pelo poder político?.Infelizmente tenho de dizer: "Claramente que sim". Tem sido uma classe relegada para segundo plano, embora reconheça que é uma classe conhecida por não ser muito pró-ativa do ponto de vista reivindicativo. A Ordem não é um sindicato, e nunca esta Ordem terá um comportamento sindical, mas obviamente é preciso que haja uma estratégia forte da própria classe no sentido de dar a conhecer a sua importância à população, aos políticos e aos decisores, que muitas vezes tomam decisões ignorando particularidades importantes do papel das profissões. No caso dos farmacêuticos, chegou o momento de os políticos perceberem que o sistema de saúde não vive sem eles. De uma forma geral, por muito bom que seja o diagnóstico, se o doente não for tratado com medicamentos não se cura e nem se salva..CitaçãocitacaoÉ fundamental que o SNS mantenha o princípio e a missão para o qual foi criado, mas é preciso que, quem tem a responsabilidade de o garantir, perceba onde está o potencial que pode permitir cumprir essa missão..Quer dizer que os farmacêuticos podem ter um papel mais ativo na Saúde e no SNS?.Podem intervir muito mais. Mas é preciso que a nível hospitalar se criem condições para que os medicamentos possam ser melhor utilizados e com mais segurança. É preciso que se dê o medicamento certo na hora certa - um doente que não é tratado inicialmente de forma adequada ou a quem se atrasa o tratamento vai sair muito mais caro ao sistema. É preciso termos esta noção. A nível das farmácias comunitárias é fundamental que os políticos também vejam o potencial da rede que temos em Portugal. São quase 3000 pontos, cada uma com uma média de quatro farmacêuticos, não são técnicos, são profissionais com formação específica e diferenciada, e isto é um potencial enorme que pode ser utilizado a bem do SNS..E porque não é?.Porque é preciso que se perceba que as farmácias, embora não fazendo parte do SNS, são uma rede fundamental para o sistema. Mais uma vez, o SNS não funciona sem farmácias, porque é preciso garantir o acesso dos doentes aos medicamentos em ambulatório. Esta é uma das funções das farmácias, mas também há outros serviços que podem desenvolver e que tirariam pressão ao SNS, quer ao nível dos cuidados primários quer das urgências hospitalares..CitaçãocitacaoEm Portugal, as farmácias comunitárias só não fazem mais intervenções porque não se criam as condições que os farmacêuticos precisam para que as possam desenvolver..De que forma?.Vou dar alguns exemplos, e não estou a inventar a roda porque estes já existem em toda a Europa. É uma tendência com cada vez mais peso no Reino Unido, Alemanha e França, por exemplo. Em Portugal, só não existem ainda porque não se criam as condições que os farmacêuticos precisam para que possam desenvolver tais tarefas. Por exemplo, na área das urgências hospitalares há um tipo de situação muito frequente, que são as infeções urinárias, mais prevalentes no sexo feminino. Não é uma situação que ponha em causa a vida das pessoas, mas é muito debilitante, mas se existirem condições especificas os farmacêuticos comunitários podem intervir e evita-se que as pessoas se desloquem às urgências..Como é que um farmacêutico pode intervir numa situação destas?.Há protocolos internacionais com regras que permitem ao farmacêutico intervir numa situação destas, que permitem identificar se é ou não uma infeção urinária, através de um teste, e depois de um conjunto de perguntas protocoladas, das quais resultam informação relevante, que torna o doente elegível para ser tratado pelo farmacêutico, dispensando-lhe o medicamento adequado, ou que leve o farmacêutico a encaminhá-lo para os cuidados primários. Este é um exemplo, mas há mais, como a renovação da prescrição de medicamentos a doentes crónicos. Há uma enorme pressão sobre os centros de saúde com a renovação de prescrição. Por norma, as pessoas têm de se deslocar ao centro de saúde para pedir a renovação de uma prescrição e depois têm de a ir buscar noutro dia, não contactando com o médico. A renovação poderia ser feita através do farmacêutico comunitário, que conhece o doente, a terapêutica que toma, que consegue até gerir potenciais interações e efeitos adversos, mas para que tal possa acontecer é preciso que os farmacêuticos tenham acesso aos dados clínicos dos doentes e de formas de comunicar com os profissionais dos cuidados primários ou dos hospitais, até para que o doente não se sinta desamparado no processo. Diz-se que as farmácias são uma porta de entrada no sistema de saúde, mas não é verdade. Os doentes vão à farmácia levam, muitas vezes, um conjunto de informação relevante, mas neste momento as farmácias ainda não têm capacidade de comunicar e de partilhar essa informação com o sistema de saúde. Não é fazer um diagnóstico, é poder colocar o doente mais rapidamente no sistema, sempre que necessário. Este é também um problema e já o sinalizámos à Sr.ª ministra..O que seria preciso para se avançar com um sistema desses?.Hoje todas as farmácias estão informatizadas e todos os serviços do SNS também. Não há problemas de os sistemas não poderem comunicar. Portanto, o que é preciso é criar condições que permitam a comunicação entre os diferentes prestadores de cuidados no sentido de partilharem a informação que é relevante. Não se pode fazer a renovação da prescrição de um doente crónico sem o farmacêutico saber se o doente está estável e sem o seu médico saber que a prescrição foi renovada, mas para isto é preciso que se trabalhe em rede e se comunique. Não é por falta de competências que os farmacêuticos não intervêm ou ajudam mais o SNS, é por falta de condições básicas para exercerem a sua função. E a tendência na Europa é de reconhecer cada vez mais o papel dos farmacêuticos nos serviços de saúde. O Reino Unido tem já uma lista significativa de serviços praticados pelos farmacêuticos que são pagos pelo SNS..Mais uma vez, porque não é possível em Portugal?.Por falta de estratégia e alguma ignorância à mistura. Tem a ver com o que falámos no início. Muitas vezes, quem decide está mal informado, não faz um esforço para se informar melhor e não tem a noção do potencial que existe em algumas profissões. O mundo evoluiu, mas tenho a impressão que, às vezes, se continua a pensar da mesma maneira que há 20 ou 30 anos. É fundamental que o SNS mantenha o princípio e a missão para o qual foi criado, a universalidade dos cuidados tendencialmente gratuita, mas é preciso que, quem tem a responsabilidade de o garantir, perceba onde está o potencial que pode permitir cumprir essa missão. Ou seja, de adaptar o SNS à realidade atual garantindo o acesso dos utentes aos melhores cuidados..Resumindo, os farmacêuticos querem um papel mais ativo no SNS....Os farmacêuticos têm de ter outro papel no SNS. A classe evoluiu imenso e tem de ter um papel diferente do que tinha há 40 anos, quando o SNS foi criado. Isto é reconhecido. Basta entrar numa farmácia comunitária ou num serviço hospitalar. Os doentes podem não ter esta noção tão clara, mas as outras classes profissionais sabem-no. Mas para que o farmacêutico possa cumprir as tarefas de acordo com toda a evolução que a ciência trouxe à profissão precisa de ter condições, que, resumindo, são: ter acesso aos dados clínicos mais relevantes para a sua intervenção, ter capacidade para comunicar dentro do sistema com os outros prestadores e haver remuneração pelos serviços que prestam de acordo com os ganhos gerados. Na pandemia foram feitas coisas que pareciam impossíveis, como os farmacêuticos terem acesso ao sistema do SNS em situação de necessidade. Foi possível os farmacêuticos comunitários fazerem testes, colocarem os resultados no sistema, mas foi preciso uma situação de desespero e emergência para que isto acontecesse, e o que é preciso é uma estratégia nacional..CitaçãocitacaoMedicamentos têm de ter estratégia apertada e adequada para garantir terapêuticas aos utentes e a sustentabilidade do SNS..Vamos às estratégias. Como é que os farmacêuticos olham para o novo estatuto do SNS?.O que o novo Estatuto do SNS tem é um conjunto de limitações ao seu próprio desenvolvimento, mais uma vez não foi tida em consideração a necessidade de que o fim último é manter a missão adaptada à realidade atual. É um estatuto pouco flexível com a preocupação de manter a estrutura, independentemente de garantir o resultado e da missão. E este princípio está mal à partida. Agora, se os farmacêuticos foram envolvidos? Tenho a dizer que não foram. Fomos ouvidos na tradição muito típica da Administração Pública para depois se incluir no final do documento todas as instituições, mas não houve uma verdadeira discussão, ponto a ponto..E relativamente ao Orçamento do Estado 2022, há uma estratégia para a saúde? Onde é que os farmacêuticos se reveem?.Em relação ao OE há uma área que me preocupa especialmente, que é o crescimento do custo com medicamentos. Continuamos a correr atrás do prejuízo. Ficámos contentes por que este ano aumentou a verba para a Saúde, mas continuamos a ter menos dinheiro para pagar os produtos inovadores, extremamente caros, que chegam ao mesmo preço a todos os países, embora eles tenham capacidades de pagar muito diversas. E isto é um problema..Porquê?.Porque vivemos um momento em que entram cada vez mais medicamentos no mercado que são verdadeiramente inovadores e com indicações terapêuticas para as quais não havia tratamento, para doenças raras, oncológicas, etc. Estes medicamentos fazem a diferença, e não há nenhum país civilizado que consiga dizer que esses produtos não são tão importantes, que não devem ser aprovados ou que não devem entrar no mercado nacional. Só que todos têm uma característica: são muito caros. E isto vai provocar um crescimento enorme na despesa com os medicamentos e é preciso prepararmo-nos para garantir que Portugal continuará a dar a todos os doentes o acesso às terapêuticas inovadoras importantes. É preciso garantir que o sistema tem e terá capacidade para responder a este novo desafio, mas não vejo nenhuma estratégia específica neste orçamento para 2022 como não vi nos anteriores. Se calhar as pessoas não têm essa noção, mas 25% do orçamento do SNS é para gastos com medicamentos. É a segunda maior rubrica a seguir aos recursos humanos. É fundamental que esta fatia seja gerida com uma estratégia apertada e adequada para se continuar a garantir a sustentabilidade do SNS e não termos de começar a negar terapêuticas importantes a determinados doentes porque o impacto orçamental é intolerável. Pela primeira vez, a despesa hospitalar com medicamentos cresceu a dois dígitos no ano passado. E este ano vai com a mesma tendência..Se não houver estratégia, planeamento e mudanças como olha para o futuro do SNS?.Com muita preocupação. Os orçamentos são finitos e o que aí vem não é barato. E se não fizermos nada, conseguimos imaginar o que irá acontecer. Basta olhar para os últimos anos e ver a degradação do SNS. Sou um defensor do SNS, mas nunca deixarei de identificar os seus problemas, só assim é que os poderemos resolver. Quem continua a achar que o SNS está a responder adequadamente às necessidades só o pode fazer por falta de visão e de respeito para com os utentes, que estes não o percecionam dessa forma e podem sentir-se como que enganados pelos decisores..CitaçãocitacaoO que o Governo e a maioria parlamentar querem fazer é governamentalizar e controlar as ordens através desta alteração legislativa, o que é inaceitável pelo método e pelo fim..Outro tema do dia é o projeto que o PS apresentou para as ordens profissionais. Concorda?.É um projeto com o qual não posso concordar por um conjunto de situações. Em primeiro lugar, a razão para este projeto aparecer é a necessidade de responder a obrigações comunitárias para que comecemos a receber dinheiro do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), só que vai muito além daquilo que são essas obrigações, e no mau sentido..Não considera que é porque as Ordens assumiram muito poder?.O terem, hipoteticamente, assumido muito poder não deve ser resolvido com uma legislação que lhes pretende coartar a sua missão mais nobre. É a pior forma de fazer as coisas. Mais vale assumir o problema de frente: quais são as Ordens e em que situações em que poderá ter havido o exercício de poderes que não são adequados e fazer propostas de alteração dessas situações particulares. Mas o que o Governo e a maioria parlamentar querem fazer é governamentalizar e controlar as ordens através desta alteração legislativa, o que é inaceitável pelo método e pelo fim. Não sou contra a modernização e maior transparência no funcionamento das Ordens, como de qualquer outra instituição, nomeadamente as da Administração Pública, mas sou completamente contra à criação desta saída sub-reptícia, embora perceba que, e pelo contexto político que estamos a viver, de uma maioria, que a decisão já estará tomada. É um projeto que vem desvirtuar o princípio mais nobre das Ordens e criar um ambiente de suspeição.