É favor regressar, sr. primeiro-ministro
O governo tomou posse há dois meses e parece governar há dez anos. A maioria absoluta prometia iniciativa, mas a inércia é digna de governo de gestão. De pequena polémica para média chatice, e dela para problemas ditos estruturais, o terceiro executivo de António Costa vive em crise desde que começou. O voto dos emigrantes, colocado no lixo em circunstâncias paranormais por inépcia legislativa que, até hoje, nenhum partido se preocupou em retificar. O acolhimento de refugiados que, desde ativistas putinistas a crimes hediondos, envergonha qualquer português. O estado do Serviço Nacional de Saúde, tutelado por uma ministra indigna de exercer funções públicas, que vai à Assembleia usar "mães e bebés" como escudo e acusar os demais de os atirar como arma.
Não podemos exatamente chamar-lhe "crise política" ‒ pois a ausência de alternativa e a supremacia parlamentar assim o impedem ‒, mas talvez lhe possamos chamar crise executiva. O Partido Socialista governa desde finais de 2015 ‒ passaram-se quase sete anos ‒ e a cada dia que passa descobre problemas que ele próprio reconhece que já cá estão ao tempo. E estão. E o PS nada fez sobre eles. Deixou estar, deixou-se andar, deixou-nos ir. Em 2019, uma mulher que entrasse num hospital para parir não sabia em que distrito do país acabaria por ter o bebé. Em 2022, uma mulher que entre num hospital não sabe se conseguirá ter esse bebé. Isto, numa democracia europeia do século XXI, é uma infâmia. E não há comissão, ideologia ou propaganda que a diminua.
Marta Temido, de bandeirinha esquerdista na mão e hino da Internacional no iPod, tornou o sistema de saúde português mais dependente de hospitais privados, de seguradoras igualmente privadas e de prestadores de serviços externos ao SNS também eles privados. A verdadeira PPP é essa dependência, e a sua signatária foi quem tanto anunciou o seu fim. Os menos 250 mil portugueses com médico de família desde a "geringonça" são um exemplo disso. O colapso nas urgências de obstetrícia é outro. O Serviço Nacional de Saúde, pelo valor social e democrático que tem, é o retrato mais real de um país que não está bem e que dificilmente acredita que ficará melhor. Mas o fenómeno é mais profundo ‒ e mais revelador ‒ do que o visível por essa moldura.
Este primeiro trimestre de maioria absoluta expôs a falência do modelo de governação unipessoal de António Costa. O primeiro-ministro, a caminho de ser o político de maior longevidade no Portugal em moeda única, nunca prescindiu de uma total autoridade na gestão das suas equipas. É um centralizador. Isso levou a que muitos apelidassem os seus ministros de vereadores, quando não assessores ou meros prolongamentos do chefe. Levando, simultaneamente, ao período de maior sucesso eleitoral contínuo na história do Partido Socialista.
A questão que separa este terceiro governo dos anteriores não é a maioria absoluta, o regresso da esquerda à rua, a substituição de Rio por um líder da oposição ou qualquer abrandamento de popularidade. Não é o país que está farto de Costa; é Costa que está cansado do país. A arena doméstica, contrariamente aos palcos internacionais, já não o entusiasma. E, tendo-se rodeado sucessivamente de governantes sem brilho, cuja obediência é a primeira e última qualidade, não tem em quem delegar o cuidado de que o país precisa. Não é possível, como estes meses demonstraram, cultivar ambições europeias pelo continente fora e deixar o Estado português entregue a Marta Temido.
Quando nos rodeamos de medíocres, não podemos abandonar a roda.
É favor regressar a ela, sr. primeiro-ministro.
Colunista