É estranho ver 300 ONG na Amazónia e nenhuma no Nordeste, diz embaixador em França
O embaixador do Brasil em França, Luís Fernando Serra, diz que a escalada retórica entre Brasil e França por causa da gestão dos incêndios na Amazónia saiu fora do controlo nos últimos dias, mas que agora é hora de "virar a página".
"Houve excessos de parte a parte", afirmou, referindo-se aos insultos de ministros brasileiros e do próprio Jair Bolsonaro ao presidente francês, Emmanuel Macron, e à mulher dele, Brigitte Macron - que Serra descreveu na TV francesa, nesta segunda-feira, como "muito bonita, inteligente, elegante e charmosa".
O embaixador endossa as críticas de Bolsonaro à suposta ingerência internacional na região da floresta - o presidente afirmou na semana passada que seu par francês manifestava "mentalidade colonialista" ao retratar a situação atual como "crise internacional".
Também ratifica o discurso de ceticismo do presidente brasileiro sobre as ONG que atuam na região amazónica. "Dá para desconfiar que tem uma agenda escondida quando você vê 300 ONG na Amazónia e zero no Nordeste. Porque 55 milhões de nordestinos não mereceram uma ONG e os 25 milhões que moram na Amazónia mereceram 300?"
O Mapa das OSC (Organizações da Sociedade Civil) - termo usado como sinónimo para ONG -, realizado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Económica Aplicada), mostra que há 205 182 organizações que atuam no Nordeste brasileiro, nas mais diferentes áreas.
É preciso esquecer a rixa com a França, defende Serra, em nome do "património [comum] extraordinário", de uma relação bilateral de 500 anos que "é a mais completa que o Brasil pode ter com um país europeu", porque inclui o aspeto fronteiriço (na Guiana Francesa).
Como recebeu a afirmação de Macron nesta segunda-feira de que o Brasil merecia um presidente à altura do cargo?
Achei forte. Temos de virar a página e continuar na construção da parceria estratégica ["selo" que a relação bilateral franco-brasileira ganhou em 2008], aprofundar todos os lados da cooperação. Ela é a mais completa que o Brasil pode ter com um país europeu, porque, além de cobrir todos os aspetos do relacionamento bilateral, inclui o fronteiriço [na Guiana, território francês] e o elo sentimental. Não tem nenhum país na Europa, nem mesmo Portugal, que tenha todos esses lados. Temos muita coisa a construir. O brasileiro e o francês se estimam, se conhecem, se adoram - isso é motivação para que os governos façam cada vez mais. É um património extraordinário, de 500 anos. São vínculos antigos: veja a missão [artística] francesa [no século XIX], a missão que chegou nos anos 1930 para fundar a USP.
Após os insultos contra o presidente francês e sua mulher por parte de membros do governo brasileiro, a escalada retórica de Macron não era esperada?
Acho que, no fim do dia [segunda-feira], a tensão baixou. As bases [da relação entre os países] são muito sólidas: a admiração, a estima, o conhecimento recíproco entre brasileiros e franceses.
Mas o senhor reconheceu na TV francesa que o nível da conversa degenerou...
Houve excessos verbais, de parte a parte. Quem começou foram os franceses, porque chamaram ao nosso presidente mentiroso [na sexta-feira].
Na verdade, o presidente Bolsonaro reagiu na véspera [quinta] a uma publicação na internet de Macron, dizendo que o francês tinha "mentalidade colonialista"...
Mas é evidente. Isso lembra-me a Conferência de Berlim de 1884, em que os europeus decidiram o futuro de África sem chamar os africanos. Dentro das fronteiras, aquilo que é o nosso pedaço da Amazónia é brasileiro, ponto final. Vai propor a internacionalização da Sibéria para o Putin... Ora! Isso é um papo que não pode prosperar, entende?
Ajuda internacional significaria necessariamente ingerência?
Não. O que significa ingerência é decidir o futuro da Amazónia sem o Brasil. Todos os mecanismos de ajuda à Amazónia [até hoje] foram negociados com o Brasil presente à mesa. Essa história de o G7 se reunir sem o Brasil e decidir que o Brasil é uma questão internacional não é aceitável, de forma alguma. A parte da Amazónia que está dentro das nossas fronteiras é brasileira, não tem relativização de soberania nenhuma [possível]. Estamos de brincadeira? Estão pensando que o Brasil é o quê? E tem mais. Não vi um jornalista falar, em 2005, dos incêndios que houve na Amazónia. Em 2015, alguém disse que os incêndios na Califórnia eram culpa do [ex-presidente dos EUA Barack] Obama? Porra. Todo o mundo se virou contra Bolsonaro, sempre arrumando pretexto porque ele falou das ONG [apontou-as como responsáveis pelo aumento das queimadas]. Dá para desconfiar que tem uma agenda escondida quando você vê 300 ONG na Amazónia e zero no Nordeste. Uma de duas: ou há agenda escondida ou preconceito com os nordestinos. Escolham uma. Porque 55 milhões de nordestinos não mereceram uma ONG, e os 25 milhões que moram na Amazónia mereceram 300? Ora, todo o mundo sabe que tem índio que fala holandês, norueguês e sueco, mas não fala português. Está-me entendendo?
O senhor teve algum contacto nos últimos dias com o Ministério das Relações Exteriores da França?
Nenhum. O embaixador da França no Brasil ligou-me para pedir um telefone, só.
Como fica a imagem internacional de comedimento e pacifismo da diplomacia brasileira diante do fogo cruzado dos últimos dias?
O Brasil continua a ser incontornável. Isso não muda. Temos a quinta população do mundo [na verdade, a sexta] e a quinta superfície. Somos número um em diversos produtos agrícolas. Na base de todo esse problema está o facto de que a nossa agricultura é muito competitiva. Isso incomoda.
O que será da relação franco-brasileira daqui para a frente?
A Agência Francesa de Desenvolvimento já financiou 1,9 mil milhões de euros no Brasil. Somos o quinto país mais importante para eles, que privilegiam projetos com energia limpa, renovável. O plano para a construção de quatro submarinos convencionais e de um nuclear é coisa de nove mil milhões de euros. Eles serão entregues até 2029. Foi construída uma base naval em Itaguaí (RJ) que é uma coisa de louco. Os franceses não nos achavam capazes disso. Hoje, estão chamando soldadores nossos. E tem Carrefour, Casino, L'Oréal, Peugeot, Renault, mil empresas francesas no Brasil, com 500 mil empregos diretos. Queremos atrair mais. O Brasil, com a casa arrumada, vai descolar.
Acha que Macron tem mesmo a intenção de não ratificar o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, ou as suas declarações recentes são um bluff para pressionar o Brasil?
A oposição à ratificação do acordo em França é muito dura, ainda que isso não se repita na Alemanha ou na Espanha, por exemplo. Não arrisco um palpite.