É curta a vida
É curta a vida quando a vemos do lado contrário à infância.
Não quando somos novos, quando tudo o que está para acontecer está para acontecer, como um campo aberto de possibilidades.
"I"ve looked at life from both sides now" (Eu tenho olhado a vida de ambos os lados agora), canta a Joni Mitchel numa canção que editou no álbum Clouds, de 1969, quando tinha vinte e poucos anos, e que voltou a incluir num álbum posterior, com o título da canção Both Sides Now, de 2000, quando tinha já cinquenta e muitos anos, numa versão incomparavelmente melhor do que a primeira, gravada com o grão grave da voz de quem com gravidade pode dizer "I"ve looked at life from both sides now/From up and down, and still somehow/ It´s life"s illusion I recall/ I really don"t know life at all" (De cima e debaixo, e ainda de alguma forma/ É a ilusão da vida que eu relembro/ Eu realmente não conheço a vida de todo).
Não é curta a vida quando somos novos, quando não somos senão um princípio, quando somos só infância.
Como quando, faz agora cinquenta anos, precisamente cinquenta anos, eu estava sentado numa carteira da velha escola 13 de Campolide a aprender de cor as letras e a tabuada e em frente era só futuro, sem memória para atrapalhar, sem medo, sem dor, sem perdas, sem merdas, sem mortes. Só sonho, jogo de bola, histórias aos quadradinhos, toca e foge, escondidas e apanhada, inocência.
Vista daqui é já tão longe aquela escola, mas no tempo de vida parece cada vez mais que foi ontem, ainda agora, ainda que, no entanto, vista daqui, pareça cada vez mais escassa, a infância, uma memória a desaparecer no horizonte.
Tempus fugit é uma inscrição comum nos relógios antigos, citação de Vergílio, "ele foge, irreversivelmente, o tempo foge".
O tempo foge, o tempo voa, "And then one day you find ten years have got behind you/ no one told you when to run, you missed the starting gun" (E um dia descobres que passaram dez anos/ Ninguém te disse quando devias correr, perdeste o tiro de partida) - Time, Pink Floyd.
Dez, vinte, cinquenta anos depois, o que fica?
Um rasto de objetos que vamos perdendo ao longo da vida, de casa para casa, coisas deixadas, como pistas que não vão dar a lugar nenhum. Peças para um museu da existência, um museu da inocência como no livro de Orhan Pamuk.
Um inventário de provas da nossa existência passada: brinquedos, utensílios, cartas, fotografias, anotações...
Com eles reconstruímos a vida como uma história, unindo os pontos, as coisas, por um fio invisível, imaginário, que é sempre um fio de Ariadne a guiar-nos para fora do labirinto do que fomos. O fio dessa história é aquilo a que nos agarramos para dar sentido às nossas emaranhadas vidas longas sempre tão breves.