É com o dom que nos levam ao "Altar"

Esperemos que as úteis e desejáveis discussões em torno da música portuguesa não nos distraiam do novo álbum dos The Gift: para a antologia do melhor pop nacional de sempre.
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Se estamos em alta, até na autoestima, a maré precisa de ser cavalgada com cuidado e sem desatenções. Para não matarmos a galinha dos ovos de ouro (lembrem-se da vaga do rock português há mais de trinta anos...) e para não deixarmos os mais válidos pelo caminho. Eis o caso porventura mais premente do momento: um disco dos The Gift - sábia escolha a deste nome, que tanto significa o presente (oferta) ou a dádiva como também serve para traduzir "o dom" - há muito se tornou um acontecimento, sendo desnecessário recordar as boas ondas de choque geradas, em diferentes dimensões, em escalas diversas, por Vinyl, Film, AM-FM, Explode e Primavera, sempre capítulos marcantes para a reinvenção de um som que, nem por ser despudoradamente internacional, deixava de nos estar ligado de forma umbilical.

Acontece que Altar, deixemo-nos de rodeios, vale mais do que um simples passo em frente, por mais seguro e mais inovador que ele fosse: o compasso dos Gift para 2017 traz lá dentro Brian Eno. Para aqueles que possam ter hibernado (desde 1972 até aos nossos dias), este moço, de 69 anos, cuja "graça" completa leva algum tempo a percorrer, uma vez que se chama Brian Peter George St. John le Baptiste de la Salle Eno, é uma verdadeira eminência, e nada parda, da pop music.

Para não enfastiar ninguém, diga-se, em síntese vertiginosa, que integrou os Roxy Music originais, leva uma revolucionária e multifacetada carreira a solo, gravou a meias com Robert Fripp, com David Byrne, com John Cale. Esteve presente no desfecho de The Lamb Lies Down On Broadway, o pico de forma dos Genesis. Produziu David Bowie (por exemplo Heroes), Talking Heads (p.e. Remain In Light), U2 (p.e. The Joshua Tree). Ou Coldplay, Depeche Mode, Bryan Ferry, James. E, atalhando caminho e cortando na lista, os Gift...

Assinalámos o momento em que Amália Rodrigues gravou com Norrie Paramor, arranjador e produtor britânico. Festejámos o encontro de Fernando Tordo com François Rauber, maestro de Jacques Brel. Brindámos ao trabalho conjunto de Ana Moura com Larry Klein, durante muito tempo parceiro próximo de Joni Mitchell. Distraímo-nos diante do nome de Joe Boys, que tão importante foi para os Deolinda. Talvez não nos tenhamos apercebido devidamente da notável produção de Joe Henry no mais recente disco de Luísa Sobral. Pela mesma ordem de ideias, haja uma ocasião em que os artefactos pirotécnicos se justifiquem - contar com o nome de Brian Eno numa produção de portugueses justifica uma versão muito alargada do "pare, escute e olhe".

O sábio que ouve

Claro que a presença deste Eno - que, ao contrário de um homónimo, pode causar azias a terceiros, em vez de as aliviar - vale apenas como um ótimo princípio. Duas vias rápidas para o desastre: primeira, não se fazer notar, interferindo pouco ou à superfície; segunda, não deixar respirar os músicos, esmagando-lhes a verve com uma atividade desmedida. Não há razão para sustos: nada disso acontece.

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Porque os Gift, sempre em mudança, por diferentes que sejam os ritmos (e as dores) do crescimento, há muito ganharam uma identidade. O que não significa que não continuem a apresentar saudáveis sintomas de "múltipla personalidade", como facilmente concluirá quem saltar de Clinic Hope, abrasiva, metralhada, para Hymn To Her, encantatória, nebulosa. E porque Brian Eno, sábio, veterano, sensível, não construiu o seu percurso a abafar as qualidades daqueles com quem lida em estúdio, bem pelo contrário.

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Altar acaba, assim, por ser um jogo bem disputado, sem mastigadelas a meio-campo, sem obsessões defensivas, com riscos e vertigem, com sentido de baliza - a diferença, o trunfo final, é que chutam todos para o mesmo lado. O disco assume os sobressaltos naturais onde, sem esforço, se ouvem ecos (ou influências ou "patrocínios", como queiram) de outras escalas do produtor.

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Pegue-se em Big Fish, uma das canções mais viscerais do álbum, e as justaposições rítmicas, os coros, os contrapontos não fogem - nem precisam - às cadências que os Talking Heads nos gravaram na memória. Logo a seguir, em Love without Violins, uma pérola que vai deixando escorregar novidades a cada audição, há um longo abraço a David Bowie, até na superlativa vocalização de Sónia Tavares.

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Em ambas as ocasiões, o que é que se ouve? Os Gift, que não precisam de lutar para "sobreviver" ao peso destas afinidades, tornadas tão próximas por Brian Eno, que, voltando à linguagem desportiva (e aos anglicismos, que dão jeito, ao menos de vez em quando), é um playmaker genial, capaz de servir os interesses da equipa.

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Acreditem: Altar, a que se foram buscar apenas dois capítulos, não tem tempos mortos. Merece ser ouvido como foi gravado: com calma, sem pressões, com "qualidade de vida" (tradução: com uma aparelhagem que não desbarate o empenho dos músicos e do produtor no "subliminar"). Pode ser apresentado, sem contraindicações ou efeitos secundários, como uma manifestação superior do talento e do trabalho, como uma consagração - o termo é horrível, reconhecidamente, mas justifica-se - de um grupo que nunca deixou que lhe maculassem as ideias e os comportamentos.

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Estarão muito longe, os Gift, daqueles rapazes que pacientemente entregavam, "em mão", aos seus alvos escolhidos o primeiro disco que gravaram (e que não se destinava, sequer, a edição comercial), apresentando-se. Fizeram muito - e muito bem - por crescer. Até este salto, tão sustentado que nos enche, a todos, ainda mais de orgulho e de prazer. Só há um problema: como é que uma alminha desliga de canções magnéticas como Vitral ou What If...? É que, à custa disso, o CD ainda se gasta...

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