E assim começa
Apesar dos "riscos globais" no fornecimento, "Portugal é um país que não depende, como a Alemanha depende, do fornecimento de gás russo e temos uma fortíssima incorporação no nosso consumo de energia das renováveis", que pesam 60% na produção de eletricidade. Assim falava o primeiro-ministro, António Costa, em junho, temperando a mensagem de tranquilidade passada já em fevereiro, quando descartava preocupações em relação à capacidade de o país lidar com eventuais explosões nos preços da energia dada a percentagem de apenas 10% do gás russo na fatura de importações dessa matéria-prima.
Mas como todos sabemos, num mundo global e sobretudo numa Europa a uma só voz, dificilmente alguém escapa aos efeitos de um bater de asas de borboleta, por muito longínquo que seja. E, por isso, mesmo sem sofrer os efeitos diretos, rapidamente a realidade se impôs e o país começou a sentir as dores da inflamação energética europeia. E elas foram ficando cada vez mais fortes, com a escalada generalizada de preços e o recente acordo com a Europa para, solidariamente, reduzirmos o consumo de gás, ainda que isso não tenha consequências nas reservas do resto do bloco europeu, tão pouco possa o que deixamos de consumir ser posto à disposição de quem tem menos.
Só não era óbvio para quem não queria ver: Portugal podia ser imune aos cortes de gás russos, mas nunca passaria ao lado das consequências do mero risco de acontecerem. E a somar à questão energética, tinha de lidar com o tema, adiado por demasiado tempo, da seca extrema (não se repensou barragens, não se avançou na gestão da rede hidrográfica nacional, não se deu um passo para ensaiar a dessalinização a sul...).
Agora, três semanas depois de a Endesa ter sofrido a fúria do governo ao anunciar que as contas da luz iam subir até 40% à boleia do mecanismo ibérico para controlar os preços do gás, o efeito da disrupção no fornecimento de gás à Europa e do consequente disparar de preços parece ter-se tornado incomportável. Quem vende o gás natural às casas portuguesas já assume que a conta vai subir, e muito. A EDP Comercial confirmou ontem que o aumento médio na fatura será de 30 euros, mais uns sete de taxas e impostos, a partir de outubro. E a Galp também admite um agravamento, ainda sem o quantificar. A razão? Não podem segurar mais as subidas de preços nos mercados internacionais sem os refletir nas famílias.
Irá o governo continuar a falar em "alarmismo" e a acusar as energéticas nacionais de quererem lucrar com a desgraça alheia? Ou advogará um mal necessário, fruto de inesperadas evoluções de contexto? Esperamos para ver.
Também ontem, lado a lado, os responsáveis do Ambiente e da Agricultura anunciaram medidas para poupar água, recomendando aos municípios que deixem de lavar ruas e regar jardins e defendendo "um regime sancionatório para comportamentos indevidos". E sem filtros, aconselharam as 43 autarquias mais afetadas pela seca extrema a "subir a tarifa aos grandes consumidores domésticos". Traduzindo, o governo recomenda que as casas onde se gasta mais de 15 metros cúbicos por mês devem pagar a água mais cara.
De acordo com a ONU, cada pessoa precisa de um pouco menos de 4 m3 de água por mês para consumo, lavagens e higiene; uma família de quatro pessoas facilmente ultrapassa o limite.
É tempo de sermos realistas. Não, não podemos gastar tanta água e o nosso padrão energético tem de mudar. Sim, os preços vão subir. Mas é preciso visão para encontrar soluções que mitiguem os efeitos inevitáveis e potenciar investimentos capazes de responder à alteração de paradigma que vivemos. A mudança veio para ficar. E quanto mais depressa o admitirmos e agirmos, menos ficarão para trás. É a única forma de escapar à miséria.
Subdiretora do Diário de Notícias