E as crianças, Senhor?
Moisés, deitado ao Nilo na sua cesta de vime, deve ter sido um dos primeiros meninos expostos registados pela história. Mas dos milhões que, ao longo dos séculos, tiveram, como ele, a tragédia de serem abandonados pelos pais biológicos, muito poucos foram recolhidos por uma princesa do Egito.
No Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa consultamos os livros de assentos e lemos estes testemunhos assombrados por uma angústia que o tempo não desvaneceu: "Aí vai essa menina e não vai batizada. E se lhe porá o nome de Antónia. Nasceu em 6 de Julho de 1790. Leva por sinal uma medida encarnada da Senhora do Cabo. E com brevidade se há de tirar e pagar-se toda a despesa que essa Real Casa tiver feito." E mais adiante: "Aí vai esse menino chamado Baltazar. Ainda mama, tem ano e meio. Filho de Joaquim Xavier e Delfina Perpétua para todo o tempo que se procurar. Acomodai-o muito bem no berço. Tratem bem dele por amor de Deus que tem muito fastio."
Estes registos surgem frequentemente acompanhados por medalhas de santos, amuletos, fitas bordadas e, por vezes, até de cartas de jogar cuidadosamente rasgadas a meio, de modo que, um dia mais tarde, essas crianças pudessem ser identificadas pela família e resgatadas à caridade pública. Mas esse dia raramente chegava.
Inventada pelo Papa Inocêncio III, no princípio do século XIII, para evitar que tantas mulheres de Roma afogassem os seus recém-nascidos no rio Tibre, a roda dos expostos, espécie de portinhola giratória onde as crianças, geralmente de poucos dias, eram deixadas, para ficarem sob os cuidados da Igreja, sem que a sua procedência fosse investigada, é bem um símbolo da fragilidade da infância ao longo da história. Filhos de relações proibidas pelos costumes da época ou de famílias que não podiam prover ao seu sustento, os expostos só nos romances de Alexandre Dumas conheciam destinos maiores do que a vida. Aos que chegavam à vida adulta esperava invariavelmente um destino de pobreza e obscuridade, mas a maioria morria cedo, como era comum num modelo demográfico em que as grandes epidemias e as fomes ceifavam os mais frágeis como foice em campo de trigo.
Este autêntico "martírio dos inocentes" não atingia apenas os mais pobres: pense-se nos nove filhos, todos mortos antes de atingir a maioridade, de D. João III, ou no espanto causado por quase toda a numerosa prole de D. Manuel I ter, pelo contrário, chegado à vida adulta. Muitas eram as princesas ou as rainhas que sucumbiam no parto ou nos dias que se lhe seguiam, devido a infeções a que a medicina da época não sabia responder. Ao analisar tal cenário, a historiadora francesa Elisabeth Badinter causou algum escândalo ao publicar, em 1980, o livro O Amor Incerto: História do Amor Maternal, no qual considerava que, nos séculos XVI a XVIII, a morte precoce de mais um filho era encarada, senão com indiferença, pelo menos com a resignação de quem vê a colheita arruinada.
Esta dura realidade foi-se suavizando de forma muito gradual, mas conheceu uma séria reviravolta na segunda metade do século XVIII, quando a Revolução Industrial tomou o mundo de assalto. Escreve o historiador Pierre Chaunu em A Civilização da Europa das Luzes: "As crises diminuíram de periodicidade na reta final do século XVIII. A revolução demográfica está estreitamente ligada à revolução económica." Uma sociedade que deixa de viver constantemente sobre o arame adquire uma nova consciência e permite-se ter novas preocupações, como o bem comum e a saúde pública.
E estas levarão, por sua vez, a maior progresso económico, e assim sucessivamente. Não será por acaso que pensadores iluministas, como Jean-Jacques Rousseau ou Diderot, desenvolveram novos conceitos pedagógicos ao mesmo tempo que, em Inglaterra, Jenner estabelecia os princípios da vacinação. Aos poucos, o modelo demográfico tradicional foi substituído por um outro, menos dependente da produtividade do ano agrícola e da bonomia do clima: entre 1700 e 1800, a população europeia triplicou. Lentamente, a mortalidade infantil começava a descer de forma sustentada e a esperança média de vida aumentava. As princesas já não eram atiradas para o leito de um desconhecido mal lhes aparecia a primeira menstruação, tal era a ânsia de aproveitar os breves anos de fertilidade.
O século XIX foi o tempo de Alice à descoberta do país das maravilhas e o de Beatrix Potter, autora de clássicos para a infância protagonizados por personagens como Pedrito Coelho, O Esquilo Trinca-Nozes ou a Pata Patrícia. As indústrias têxtil e do brinquedo descobriam, pela primeira vez, as necessidades específicas da criança. Nos grandes armazéns de Londres, Paris ou Lisboa ver-se-ia, pela primeira vez, um vestuário concebido para os mais pequenos e não já as miniaturas da roupa dos adultos, que encontramos, por exemplo, nos retratos de corte dos séculos anteriores. Pierre Auguste Renoir pinta os seus rapazes com grandes laçarotes nos cabelos compridos. Velásquez, dois séculos antes, retratara as pequenas infantas de Espanha como miniaturas da mãe.
Esta consciência nova da identidade infantil galgou fronteiras. Em Portugal, surgia, por esta época, a figura de João de Deus, provavelmente o primeiro autor português a preocupar-se especificamente com a infância, o seu mundo particular e desenvolvimento. Nascido em São Bartolomeu de Messines em 1830, este filho de modestos agricultores foi um advogado e político entediado até ao momento em que encontrou na poesia e na pedagogia a sua vocação. Em 1876, João de Deus envolveu-se em campanhas de alfabetização, escrevendo A Cartilha Maternal, um novo método de ensino da leitura, que haveria de o distinguir como pedagogo de referência nas gerações seguintes.
As duas guerras mundiais agudizaram, na comunidade internacional, a consciência de que as crianças, como no poema de Augusto Gil "Balada da neve", são os mais frágeis passageiros da história. A primeira referência a "direitos da criança" num instrumento jurídico internacional remonta a 1924, quando a Assembleia da Sociedade das Nações reconheceu o direito à proteção, ao desenvolvimento e ao auxílio dos mais pequenos, independentemente da raça, da nacionalidade ou da crença religiosa. Em caso de calamidade, humana ou natural, deveria ter acesso prioritário ao socorro. Em 1948, no rescaldo da Segunda Guerra, criar-se-ia o Fundo de Emergência das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF), mas só em 1959 seria efetivamente aprovada, nas Nações Unidas, a Declaração dos Direitos da Criança.
No Ocidente, os filhos tornaram-se aos poucos o centro das famílias da classe média. O pediatra norte-americano Benjamin Spock foi entronizado como guru de milhões de pais angustiados, com livros como Meu Filho, Meu Tesouro. Publicado originalmente em 1946, este foi, em todo o século XX, o segundo livro mais vendido nos Estados Unidos logo a seguir à Bíblia. Em 1998, data da morte do autor, a obra já fora traduzida para 42 línguas, com quase 50 milhões de cópias vendidas pelo mundo fora. Razões de tão planetário sucesso? Nunca se saberá ao certo, mas a verdade é que Spock ajudou a disseminar as noções básicas de puericultura na população, numa época em que esse tipo de conhecimentos era quase exclusivo da comunidade médica. Ao mesmo tempo, este pediatra sossegava mães e famílias demasiado ansiosas, dando-lhe conselhos tranquilizantes como "você sabe mais do que julga saber" ou "aceite o bebé tal como ele é; será a melhor maneira de o educar".
Esta nova valorização da infância passaria inevitavelmente do consultório médico para outras áreas da sociedade. As revistas femininas (como as portuguesas Crónica Feminina ou Mamãs e Bebés enchem-se de rubricas com conselhos sobre educação e cuidados), a televisão acompanha com programas destinados aos mais pequenos, desde séries de aventuras como Pipi das Meias Altas, Os Pequenos Vagabundos (de origem franco-belga-suíço-canadiana), de animações como Bell e Sebastião à Telescola propriamente dita. Com uma atenção nova a esta faixa de público, a RTP iniciaria, aliás, produção própria para os mais novos, como as emissões de ginástica conduzidas pelo Prof. Hélder de Matos ou a animação A Família Pituxa, que diariamente mandava os meninos para a cama depois de "rezar a Jesus".
A democracia, a criação do Serviço Nacional de Saúde e a redução das enormes assimetrias sociais do Estado Novo permitiu-nos passar do país dos "homens que nunca foram meninos" (de que Soeiro Pereira Gomes falava no romance Esteiros) para a situação de membro da OCDE com maior redução média anual da mortalidade infantil entre 1990 e 2013. A este êxito português não será estranha a substancial evolução da saúde materna e infantil devidamente assinalada pelo Relatório Mundial da Saúde de 2008. Mas, como os tempos mais recentes nos têm ensinado, nenhuma vitória, em área tão sensível, poderá ser tomada por definitiva.