E ao sétimo dia, o Charlie Hebdo ressuscitou Maomé

"A França está de pé", dizia ontem Hollande na homenagem aos polícias mortos. O Charlie Hebdo também: os três milhões de exemplares da edição de hoje não chegam para as encomendas. Charlie Akbar.
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"Naïf, simpática, cansada." Pauline, 28 anos, atriz, vê assim a capa de hoje do Charlie Hebdo. Conhecida desde anteontem na net, era já ontem reproduzida por vários jornais, como o Le Monde, que Pauline acaba de comprar num quiosque perto da Ópera. "Acho que é uma forma de pedir paz, uma capa que retrata um mundo ideal, em que todos são solidários e até Maomé chora pelos mortos causados pelos terroristas." Sorri. "É uma ironia. Mas tudo isto é tão irónico. O Charlie Hebdo tinha 300 assinaturas. Quase não vendia. Ninguém era obrigado a ver, a ler."

Hakim, o empregado do quiosque, 35 anos, muçulmano dos subúrbios, faz que sim. "Recebia três por semana e vendia talvez um por mês... E se como muçulmano achava que em certas caricaturas iam longe de mais, nunca me senti agredido. E mesmo que sentisse, não me cabe a mim fazer justiça, simplesmente não leio aquilo de que não gosto." Para hoje, tem garantida a entrega de 35 exemplares do CH, mais 17 na quinta, segundo um e-mail da distribuidora, que mostra no telefone. "Se recebesse cem ou 200, vendia todos, tenho imensos pedidos. Começaram a encomendar desde sexta, mal se soube que ia sair. Todos os que vou receber já estão reservados para clientes habituais." Está porém certo de que a procura desmesurada deste número é um fenómeno sem futuro. "Vai passar. Mesmo com os outros jornais sente-se hoje uma queda, depois da loucura dos primeiros dias. As pessoas já não compram a imprensa. Se não houvesse apoios aos jornais em França, não se aguentavam. Nós, que vivíamos de os vender, temos de nos virar para os souvenirs."

Em todo o caso, o sucesso de vendas anunciado do Charlie Hebdo de hoje, cuja tiragem de três milhões parece antecipadamente esgotada, não aproveitará aos vendedores, que abdicaram de qualquer percentagem em solidariedade com o jornal e as vítimas dos atentados.

Benoit Michel, 51 anos, dono doutro quiosque, encolhe os ombros. “É a loucura. Até uns turistas canadianos que partiram hoje me vieram pedir que lhes enviasse o jornal para o Canadá, queriam deixar o dinheiro para os portes. E uma firma veio encomendar 50. Disse-lhes que não podia ser, só devo receber uns 75 e tenho tudo reservado para os clientes habituais. Que acho disso? Bom, é talvez uma reação normal depois do que se passou, mas claro que podemos lembrar-nos de tantos jornalistas mortos no mundo todo pelos quais ninguém marcha [mostra o relatório anual dos Repórteres Sem Fronteiras, escondido debaixo de um molho de jornais, comenta: “Quase ninguém o compra”], ou os atentados todos que há praticamente todos os dias no mundo todo.”

A ironia estende-se às ameaças: “Dizem que os fundamentalistas podem atacar os quiosques. A mim dava-me jeito, recebia o dinheiro do seguro...” Interrompe para vender o Le Monde a um cliente de quipá (solidéu judaico) que se junta à conversa. É Daniel Ittah, 50 anos, dentista, que também quer um exemplar do CH. O mesmo vem pedir um sexagenário: “Pode-me guardar dois ou três?”.

Inquirido sobre o que pensa da capa do CH, Daniel não sabe o que dizer. “Não sou leitor do jornal e acho que não há necessidade de fazer críticas tão claras à religião, mas acho que as caricaturas deles nunca foram para fazer do mundo um lugar pior, pelo contrário. Atacavam o islão, OK...” Benoit interrompe: “Não, não atacavam o islão. Atacavam todas as religiões, os fundamentalismos. É um jornal satírico, caramba. É para fazer rir.” Daniel corrige: “Atacavam uma visão do Islão, pois. Mas sobre esta capa, não sei...”

Benoit sabe. Teria feito  “uma homenagem aos mortos, um número não convencional. Mas OK, fizeram isto. Acho que é uma capa sobre o perdão.”

Será mesmo? O autor, Renald Luzier, de nome profissional Luz, e que escapou ao massacre por ter chegado atrasado à reunião, dizia ontem, numa conferência de imprensa, que passou dias a desenhar e a chorar e recomeçar até que chegar àquela caricatura, que o fez sorrir. E escusa-se a fazer um desenho do desenho: “É preciso explicar? Nunca tenho vontade de o fazer, senão impeço as várias leituras. É uma capa dirigida às pessoas inteligentes, muito mais numerosas que o que se crê, entre os ateus, os católicos, os muçulmanos...”

Daí que uns nela vejam um pedido de paz, outros desafio e sarcasmo -- não apenas por voltar a fazer o que os terroristas consideram insultuoso e que o grande mufti do Egipto hoje já condenou como provocatório, considerando-a “um ato racista que incita ao ódio e irá irritar os muçulmanos de todo o mundo” (há mesmo um clérigo fundamentalista britânico, Anjem Choudary, conhecido pelo seu apoio público aos terroristas do 11 de setembro, que considera a capa “uma declaração de guerra”), ou seja, representar a figura de Maomé, mas por constituir uma sátira à ideia de que toda a gente está de acordo, toda a gente defende a liberdade e toda a gente está solidária, uma sátira à grande amálgama que o movimento Je suis Charlie é, colocando até o profeta invocado pelos terroristas para justificar o que fizeram de lágrima no olho (de verdadeira dor? De crocodilo? De lamechice sem substância? De arrastamento pela onda global?).

Mas a ideia de que a capa pode ter a leitura contrária da sua não convence Benoit. “O perdão pode parecer impossível mas existe”, pontifica. “É ver os alemães e os franceses, que andaram às turras em duas grandes guerras. Fizeram as pazes.” O exemplo mais adequado, dada a presença de Daniel, seria o dos judeus e da França – esse tabu tão raramente aflorado e que as palavras do primeiro-ministro israelita, ao convidar todos os judeus de França a mudarem-se para Israel por lá estarem mais seguros, invoca. Daniel não gostou: “Sei que estou mais exposto que os outros e preocupo-me com os meus filhos, que andam numa escola judaica. Mas foram reforçadas as medidas de segurança e houve uma reação muito boa das pessoas. Fiquei contente.” 

Arnault Legrange, 44 anos, dono do quiosque junto ao metro Grands Boulevards, também está contente, mas com a capa do CH. “Gosto muito. Não esperava que fizessem uma coisa assim. Não é um desenho vingador, agressivo, mas tem a coragem de usar Maomé. Já estão a ter reações, como a do mufti do Egipto. E de alguma forma é uma crítica a tantos que se juntaram ao movimento, que apareceram na manifestação, por exemplo representantes da Arábia Saudita e Qatar, que não têm nada de democrático, nada de respeito pela liberdade. Foram ali fazer o quê? É isso também, esta capa.”

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