"Duvido que hoje algum líder europeu queira a Turquia na UE"

Turkuler Isiksel, que ensina Ciência Política na Universidade de Columbia, nos EUA, esteve em Lisboa para participar numa conferência organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Ao DN, entre outros temas, falou sobre o futuro da União Europeia e o momento político que se vive na Turquia
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Crises como a financeira e a saída do Reino Unido da União Europeia (UE) são exemplos daquilo que alguns sugerem ser os limites do projeto europeu?

Uma das coisas que podemos dizer é que a UE prospera e se desenvolve com crises. O seu lema poderia ser uma expressão de Winston Churchill: "nunca se deve desperdiçar uma boa crise". Se olharmos para a história, sempre que houve crise, verificaram-se avanços no processo de integração europeia. Se é verdade que, em circunstâncias normais, a vontade política dos Estados membros não será de fazer grandes avanços, quando se verifica uma situação de necessidade, veem-se obrigados a tomar decisões que poderiam não estarem dispostos a considerar por causa dos elevados custos políticos...

Um exemplo.

O mais recente é a do processo de integração bancária, o que era politicamente inviável antes da crise financeira. Então, ficou claro que sem união bancária, a união monetária estaria sempre incompleta.

A UE acaba por sair sempre reforçada de cada vez que há uma crise ou há circunstâncias em que tal não sucedeu?

Não quero dizer que cada situação se possa considerar positiva ou negativa nem que todos os Estados membros se tenham envolvido ativamente no processo de transferência de mais poderes para o nível supranacional. Mas há um exemplo clássico, citado pelos cientistas políticos, que é "a crise da cadeira vazia" de 1966, quando De Gaulle decidiu não estar presente no Conselho se a França não obtivesse poder de veto. A então Comunidade Económica Europeia acabou imobilizada e o que sucedeu é que o Tribunal Europeu de Justiça começou a tomar uma série de decisões previstas nos tratados, mas que os Estados membros não estavam a concretizar e foi assim que se avançou no processo de integração dos mercados.

A propósito dessa tensão entre Estados membros e as instituições da UE, esta permanecerá uma organização de Estados nações ou vê a possibilidade de se avançar para um nível supranacional ou pós-nacional?

Os tratados afirmam que o objetivo é uma cada vez maior união entre os povos da Europa. Não estamos aqui perante um projeto de construção de uma nação, de um Estados. A UE é um projeto de cooperação em que não é suposto a dissolução dos seus membros numa nova entidade e em que a identidade destes permanece intacta. Por isso, não vejo como viável uma evolução para uma federação. Haverá sempre diversidade. O facto de a UE ter hoje 28 Estados membros muito diferentes entre si não significa que ter um melting pot, assistir a uma fusão de culturas e ao aparecimento de uma nova entidade. A UE vai permanecer como, digamos, um mosaico, com algumas fendas. Há alguns importantes movimentos autonómicos no quadro dos Estados membros, mas não creio que se vá assistir ao desaparecimento do Estado nação num quadro temporal previsível. Pelo contrário. Estamos até a assistir ao ressurgimento do Estado nação impulsionado por movimentos populistas e de extrema-direita. Isto é um sinal evidente de que os povos da Europa não querem abdicar da soberania própria do Estado nação.

Os movimentos populistas podem tornar-se relevantes ao ponto de porem em perigo a democracia?

Possivelmente. Jan-Werner Müller [cientista político alemão], que ensina em Princeton, defende que a UE foi uma das respostas que os políticos do pós-guerra encontraram para restringir o poder das massas e daquilo que viam como a tendência destas para agirem de forma irracional, nacionalista e chauvinista. O projeto de integração europeia pode ser considerado uma resposta ao desafio colocado pela mobilização das massas em torno de interesses exclusivamente nacionais. Neste sentido, a integração europeia teve sucesso ao reduzir algumas das animosidades nacionais em favor de uma maior cooperação. Agora, a perceção de que muitas das decisões que afetam a vida das pessoas são tomadas por uma burocracia sem rosto em Bruxelas, que, devo dizer, é uma impressão errada, tem vindo a criar um grande ressentimento popular...

Como superar isso?

As políticas de austeridade contribuíram para esse ressentimento. Há também a perceção que a UE está a exacerbar os aspetos negativos da globalização económica, dos mecanismos neoliberais que prejudicam a vida das pessoas, quando, de facto, é o melhor instrumento que os Estados membros têm para se protegerem das pressões da globalização e de garantirem melhores condições para os seus cidadãos. Muitas vezes esquece-se que no preâmbulo do Tratado de Roma se estabelece como objetivo melhorar as condições de vida dos europeus. Penso que perdemos isto de vista. A UE não está hoje a fazer um bom trabalho neste campo, se pensarmos, por exemplo, que um quarto da população grega está pobreza. Penso que a UE deve levar a sério essa promessa de melhorar as condições de vida das pessoas e não se fixar só na criação de uma economia de mercado mais competitiva. Deve ter em conta a dimensão social.

O presidente francês e a chanceler alemã estiveram recentemente reunidos e falou-se numa "refundação" do projeto europeu mas creio que, essencialmente, ficou claro que o eixo franco-alemão tem um peso na UE que é decisivo...

Só a Alemanha e a França contam, é isso?

Basicamente.

Não sei muito sobre Macron, sobre as suas ideias políticas e económicas, o que ele pretende. É ainda uma incógnita. Há uma simetria de poder e de influência entre os dois principais países da UE, Alemanha e França, e talvez alguma influência da Polónia e da Itália. Depois, os restantes Estados estão, de algum modo, um pouco nas margens dos processos de decisão. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que os naturais dos Estados membros mais pequenos são, tendencialmente, os mais entusiastas sobre a UE, não digo necessariamente sobre a união monetária ou as políticas de austeridade, mas sobre o processo de integração, porque sabem que sem a UE teriam muita pouca ou nenhuma voz no plano internacional e, globalmente, estariam ainda numa posição de maior desigualdade. Creio que é importante ter isto presente.

Ainda sobre a influência da Alemanha, a eurozona funciona de uma forma democrática?

O facto de a UE ter competência própria em matéria de política monetária, mas sem uma base fiscal, leva a um processo de decisão que podemos considerar antidemocrático, com o Banco Central Europeu a ter mais influência do que deveria ter, além de que não responde perante ninguém. Há um espaço para entidades e instituições independentes nos Estados modernos mas creio que se as pessoas nos Estados membros podem mudar os governos mas não podem mudar as políticas, isso é um problema grave. Para mim, este é um problema de democracia. Por exemplo, a Grécia pode ter governos de centro-direita, centro-esquerda e extrema-esquerda e, ainda assim, não consegue renegociar nada, mudar de política. Está-se aqui perante uma séria crise de responsabilização democrática. Como se pode considerar democrático um país onde não é possível alterar a política fiscal ou social? Os eleitores gregos várias vezes votaram contra as políticas de austeridade, mas não mudou nada. E isto não tem a ver só com o predomínio alemão, está relacionado com a forma como a união monetária foi concebida. Esse é o problema. Há um défice democrático na UE que é exacerbado pela forma como a união monetária foi criada. Falta a componente fiscal e social.

Reconheceu em 2006 que o AKP, de início no poder, contribuiu para a liberalização do sistema político turco, reconheceu a especificidade da minoria curda e colocou sob controlo civil as forças armadas. A partir de que ponto se pode falar da deriva autoritária a que se está a assistir, na opinião de muitos, e estamos perante um projeto centrado em Erdogan ou é parte de uma estratégia de hegemonização prosseguida pelo partido?

Nunca tive dúvidas sobre a existência de um elemento autoritário no AKP. No entanto, havia também elementos na sociedade e na política turcas que pensei fossem suficientes para conter o autoritarismo do AKP. E isso durante algum tempo. As reformas liberalizadoras que referi em 2006 foram o resultado dessa tensão entre as tendências conservadoras do AKP, que tem importante apoio popular, e as tendências, com menos apoio mas representadas pelos setores kemalistas e seculares então bem representadas nas forças armadas, no aparelho judicial, na Administração Pública e nas universidades. As reformas liberalizadoras tiveram um duplo objetivo: por um lado, tornar a Turquia mais apresentável num momento em que a integração na UE era importante, por outro, visaram aqueles setores e a sua influência, procurando reduzir esta. Claro que é essencial ter as forças armadas sob controlo civil e o AKP conseguiu isso, mas foi ainda mais longe e infiltrou-se em todas as instituições da República e começou a desmantelar todos os freios e contrapesos...

E a concentrar o poder na figura do presidente Erdogan?

Ele vai estar no poder durante mais uma década. É bastante popular e duvido muito que alguém possa desafiá-lo com sucesso nas urnas. Claro que temos de nos interrogar sobre a credibilidade das eleições, tendo presentes as acusações de irregularidades feitas no recente referendo constitucional, mas isso é outra questão. Quanto a Erdogan, há pessoas no AKP que têm dito que o reforço dos poderes presidenciais, que vai para além dos dois mandatos dele, é uma solução perigosa ao concentrar tanto poder numa só instituição. Tanto mais que deixaram de existir reais mecanismos de controlo e responsabilização.

A adesão da Turquia à UE está definitivamente comprometida?

A Turquia deixou de cumprir os Critérios de Copenhaga [que definem as condições para a adesão]. Podemos responsabilizar a UE pela falta de vontade política quando a Turquia procurou a adesão, mas a situação agora é esta. Há pessoas que me dizem se o processo tivesse avançado, não se estaria como se está hoje, mas duvido. A UE não pode aceitar um país que não cumpre as condições de adesão, que não tem um sistema político liberal e democrático. A UE está a pagar um preço elevado por ter admitido países que se encontram agora a viver uma deriva autoritária...

A Hungria?

A Hungria e a Polónia. E a Turquia teria sido o mesmo. Mas a adesão está agora totalmente fora de questão por causa das violações de direitos humanos e da forma como as instituições funcionam e também do lado da UE deixou de haver qualquer vontade política para isso, até por causa do sentimento anti-muçulmano a que se está a assistir, os fenómenos de xenofobia. Duvido que haja algum líder na UE que queira [hoje] a adesão da Turquia, em especial depois do brexit.

Começou recentemente o julgamento dos envolvidos na tentativa de golpe de julho de 2016. Acredita na versão do poder político em Ancara, que o atribui à iniciativa a Fethullah Gülen, e qual seria a situação hoje na Turquia em caso de sucesso do golpe?

Na história da Turquia houve vários golpes. Nenhum de consequências positivas. Tenho de dizer que, por muito mau que seja um governo eleito e legítimo, um golpe militar acaba por produzir piores resultados. Condeno, por isso, qualquer golpe e esse em particular. Quanto à questão da responsabilidade e das motivações do golpe de 15 de julho, não tenho nenhuma informação em particular. O importante é determinar as razões. Mas com as limitações à liberdade de imprensa hoje na Turquia, duvido que haja condições para uma investigação que determine a motivação dos golpistas. E como politóloga, não acredito em teorias da conspiração.

Vivendo nos EUA, como interpreta a vitória de Donald Trump?

A vitória de Donald Trump/derrota de Hillary Clinton resulta de uma tendência do eleitorado americano de escolher o exato oposto da presidência que termina. A de Barack Obama caracterizou-se pela defesa de causas progressistas e temos agora uma reação contrária.

Porquê?

A sociedade americana está extremamente polarizada. Mas Trump perdeu o voto popular e só chegou a presidente devido a esta identidade anacrónica que é o colégio eleitoral. Claro que Hillary sobrestimou a sua vantagem, não fez campanha em estados decisivos, como o Wisconsin e Michigan. E há uma corrente profunda conservadora e reacionária no eleitorado americano. Talvez não haja uma explicação profunda, sociológica para a vitória de Trump. Agora, se ele ganhar o segundo mandato, terei de reavaliar a situação.

Os freios e contrapesos no sistema político dos EUA são suficientes para conter uma deriva autoritária, como alguns sugerem que Trump pretende seguir?

A resposta a essa pergunta depende de quem a dá. Se é alguém que vem de um país que teve experiências autoritárias, iliberais e populistas, vê as debilidades e as falhas das instituições para conter o poder político. Por outro lado, os meus colegas americanos preferem sublinhar a resistência e as capacidades das instituições dos EUA, da administração federal, do aparelho judicial enquanto eu penso que as instituições são mais frágeis do que podem parecer e Trump já conseguiu surpreender as pessoas em muitos aspetos, quebrou muitos tabus e isso não teve custo político para ele, só contribuiu para o tornar atrativo. Por isso, como diz a personagem da rainha em Alice no País das Maravilhas, "temos de acreditar em sete coisas impossíveis antes do pequeno-almoço". Trump ter sido o candidato escolhido pelos republicanos e depois ter ganho a eleição, teríamos considerado isso impossível há dois anos. Muitas coisas que julgávamos que não poderiam suceder, estão a suceder. Por isso, penso que devemos permanecer vigilantes e não confiar apenas na força das instituições.

Trump pode ganhar o segundo mandato?

Uma recente sondagem publicada no The Washington Post [23 de abril] mostra que só 2% das pessoas que votaram Trump mudaram de ideias, isto apesar de tudo o que está a suceder à volta da presidência. Vamos ver.

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