Duelo institucional até na comunicação não verbal

Costa e Marcelo escolheram formas distintas de se dirigirem aos portugueses. O primeiro-ministro falou pausadamente e deu tempo a quem o ouvia para processar as suas palavras. Já o Presidente não escondeu a sua indignação, em voz alta.
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Antigamente os duelos faziam-se com pistolas e num local remoto, longe de olhares curiosos. Hoje não envolvem armas no seu sentido literal, mas acontecem na praça pública, o que os torna ainda mais perigosos. O duelo entre o primeiro-ministro, António Costa, e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a que assistimos durante a semana foi um destes - especialmente no que diz respeito à comunicação verbal e não verbal.

Para explicar, sugiro começar, por ordem temporal, pelo discurso de António Costa, que, sem dúvida, foi muito bem preparado. É o que se espera de um discurso desta importância, claro, mas parece que neste caso particular houve uma atenção especial a cada pormenor - desde a escolha do local onde foi feito o comunicado até às palavras e à forma de gesticular. Por exemplo, frases como "procurei informar-me detalhadamente" ou "os serviços de informação e os órgãos de polícia criminal agiram no âmbito do entendimento que têm das suas competências próprias" não são propriamente fáceis e revelam uma preparação minuciosa do momento. E até levantam dúvidas: será que teve ajuda (discreta) de teleponto?

Os locais onde ambos os comunicados decorreram também não parecem resultar do acaso. O primeiro-ministro optou por um discurso sem púlpito, sem apontamentos na mão e à porta de "casa" - tudo pensado para passar uma imagem de transparência, segurança e intimidade. Apelou à sua consciência várias vezes ("dou primazia à minha consciência") e, a dada altura, deu a entender que falava, acima de tudo, como cidadão, homem comum e não como chefe do Governo ("a responsabilidade é minha, só minha, exclusivamente minha", reforçou ao longo do discurso).

Uma pergunta: viu o primeiro-ministro a gesticular durante a primeira parte do comunicado? Eu também não. Falou com as mãos "atadas" à frente do corpo - algo que não é nada típico do seu estilo de comunicação. Não sabemos se foi uma forma instintiva de se proteger de uma situação difícil ou uma estratégia para manter o foco e o autocontrolo. Mas todos sentimos que resultou muito bem. Conseguiu focar-se apenas no que estava a dizer (e não no que estava a fazer às mãos), ponderar cada palavra (falou bem mais pausadamente do que o habitual) e, com isto, passar uma imagem de convicção e de segurança, sem dar margem a improvisos.

Foi curioso ver como o padrão de gesticulação mudava conforme os tópicos. Quando falava do dever do governo, da "acusação grave" sobre o ministro das Infraestruturas e da sua colaboração com a Comissão Parlamentar de Inquérito, das divergências com o Presidente da República no passado, do futuro e do seu dever de tomada de decisões, as mãos gesticulavam no seu padrão habitual. Aqui pareceu estar confortável e convicto do que estava a dizer. Mas nem tanto quando falou da credibilidade do ministério, do timing da apresentação da demissão e do processo de privatização da TAP. Acaso? Duvido. Mais provavelmente o corpo a reagir à complexidade dos assuntos e a revelar uma convicção pessoal contrária ao que estava a dizer.

Outra estratégia que usou para manter o foco, o nosso e o dele, foi falar pausadamente. Com isto deu tempo para a audiência processar o que estava a dizer e, o mais importante, teve oportunidade de pensar no que ia dizer a seguir e escolher (relembrar?) cada palavra com cuidado. Resultou? Sem dúvida. Reforçou o ar de segurança e evitou uma fala "enrolada", como já aconteceu em algumas ocasiões. Uma fala pausada garante um maior autocontrolo, mas também permite que se notem mais facilmente as falhas: quando, de repente, afirmou que foi o chefe de gabinete quem ligou às autoridades, parou, gaguejou, levando a que quem escutava o discurso se apercebesse de que ele não estava a ser congruente com o que tinha dito anteriormente (na versão anterior tinham sido membros do gabinete não identificados a participar o ocorrido às autoridades, mas várias horas depois soubemos que foi o ministro quem ligou à Polícia Judiciária).

E será que se mostrou preocupado com o facto de o Presidente da República ter uma opinião diferente sobre a continuidade do ministro João Galamba? António Costa limitou-se a dizer que respeitava, "naturalmente", a opinião do Presidente da República. Infelizmente, o corpo não acompanhou esta afirmação. Basta olhar para os ombros, que, no momento decisivo, subiram. Este gesto de "encolher os ombros" significa "não sei, não tenho a certeza", e, ao aparecer juntamente com palavras afirmativas, gera sempre algumas dúvidas sobre o que está a ser dito. Ou seja, sinal de alerta: aqui, o comportamento não verbal é incongruente com o discurso.

Um duelo exige dois parceiros e a resposta do Presidente da República chegou dentro das 48 horas seguintes, como as boas regras de protocolo (e a opinião pública) exigem, e após um jantar e um gelado inesperadamente saboreados, na véspera, no exterior do Palácio. Optou por falar atrás de um púlpito, com o símbolo da Presidência à frente e com duas bandeiras na retaguarda, tal como se espera numa declaração oficial da principal figura do Estado. Falou antes de mais como Presidente que se dirige aos seus cidadãos, e não como Marcelo, cidadão e homem comum (ou como "comentador", como pareceu que havia sido apelidado pelo primeiro-ministro).

Demonstrou igual cuidado na preparação, até fez questão de levar o discurso escrito em papel. Ao ler o texto, ganhou em precisão, sem correr o risco de acabar por dizer o que não queria, como acontecera com o primeiro-ministro. Mas um discurso escrito leva normalmente a frases mais longas e complexas, que dificultam a compreensão e, mais importante, a leitura - vimos Marcelo parar a meio de algumas frases, de tão longas que eram. E mais: um discurso lido soa de forma completamente diferente de um discurso espontâneo - não transmite emoção. Mas, ainda assim, o Presidente da República esforçou-se por pontuar o seu discurso com algum do dinamismo e cor que lhe são habituais.

Ao contrário do primeiro-ministro, o Presidente da República assumiu em voz alta a sua indignação com a decisão daquele em não demitir o ministro. E aqui não deixou dúvidas - tudo na sua voz e no corpo reforçou a mensagem verbal. Sublinhou até que vai estar (ainda) mais atento ao trabalho do governo, e, provavelmente, esta foi a frase mais forte de todo o discurso e soou como um aviso ao chefe do Governo e como uma promessa ao povo português - o duelo vai continuar e o vencedor ainda está por definir.

Especialista em comunicação não verbal

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