Duas óperas em que os músicos brincam com o ego dos cantores
Uma ópera em que os músicos da orquestra também falam? Parece que sim: "eu vou à boca de cena falar sobre o ego dos cantores e, em contraste, sobre o que é ser um elemento da equipa", declara Cristiana Gonçalves, 25 anos e contrabaixista da Orquestra de Câmara Portuguesa (OCP) desde há seis.
Esta será apenas uma das muitas diferenças - ou surpresas - da récita operática desta noite no CCB, cujo cartaz junta Prima la musica, poi le parole, de Salieri, e Der Schauspieldirektor, de Mozart, duas pequenas óperas cheias de humor estreadas em simultâneo na estufa do Palácio de Schönbrunn (Viena), em fevereiro de 1786, por vontade do comanditário, o imperador José II.
"Quisemos transmitir a essência das óperas através dos meios de que dispomos: as pessoas, isto é, os nossos músicos", explica Pedro Carneiro, fundador e maestro da OCP. "E em paralelo fazemos uma reflexão acerca do tema delas", acrescenta Teresa Simas, responsável da componente cénica". E o tema "é uma discussão muito pertinente sobre o processo criativo [no Salieri]; e sobre os bastidores do teatro [no Mozart], que são temas de sempre, atuais tal qual nos dias de hoje!" Esse também foi um dos intuitos desta operação: "tentámos achar um modo de olhar para estas obras a partir de um ponto de vista do século XXI, fazer que falassem para nós, hoje".
A partir daí, foi "só" explorar "a criatividade da OCP, que é o nosso elemento diferenciador". E explorá-la com a OCP: "estes músicos são o oposto dos egos dos cantores que uma e outra óperas parodiam. E eles gostam de desafios!" No final, seis deles foram "convocados para avançar no palco [a orquestra está sobre o palco] e falarem ao/com o público". Foi também uma forma de "dar vida e voz a pessoas que falam só através do seu instrumento e cuja "opinião" é a excelência do seu trabalho".
Ao mesmo tempo, a ausência de legendagem [as tramas são muito simples] permitiu criar uma meta-narrativa: "há uma segunda dimensão - o acerca de -, com intercalações textuais: monólogos, diálogos, discussões. São narrativas dos próprios músicos sobre aqueles temas, que acabam por ser reflexões sobre óperas que de per si refletem sobre a ópera enquanto criação e enquanto indústria".
Mas uma ópera não se faz sem cantores e os que hoje cantam também foram surpreendidos: "eles esperavam uma versão de concerto tradicional e ao princípio mostraram-se um pouco reticentes", admite Teresa. Mas como, segundo Pedro Carneiro, "a abertura de espírito é indispensável para entrar de coração aberto, sem comprometer a excelência", os cinco solistas, continua Teresa, "acabaram por aderir e até encorajaram e sugeriram coisas!" Em jeito de aparte, diga-se que ambas as óperas expõem ao ridículo os egos enormes e a cupidez dos cantores líricos (apesar dos conciliadores happy endings...).
Um espetáculo que, concorda Pedro, "ficaria muito bem num pequeno teatro", pois, diz, "a proximidade geraria maior cumplicidade com o público". De resto, consideram, "este espetáculo ficaria "a matar" em digressão e é para levar, mesmo. A montagem é tão simples!"
E como quem entra no mundo da ópera, nunca fica pela entrada, "sim, isto é um warm-up para saber se haverá mais no futuro e o saldo é desde já muito positivo." Títulos para essa próxima vez, "o Idomeneo [Mozart], o Fidelio [Beethoven], o Rapto do Serralho [Mozart]..." E se tal acontecer num teatro de ópera, "será muitíssimo interessante para nós, mas seria muito importante que fôssemos com os nossos amigos [a equipa de produção]!"
Perguntamos de novo a Cristiana se a sua intervenção surtiu efeito sobre os egos dos cantores: "Supostamente, deveria resultar, mas acho que não. São um caso perdido...", acrescenta, suspirando, entre risos.