Duas amigas turcas em Üsküdar, uma de cabelos soltos, outra de lenço
Quando Recep Erdogan ameaçou com uma "bofetada otomana" os soldados americanos que se intrometessem com o esforço turco para conter as milícias curdas na Síria, estava a exibir o melhor da sua retórica e a deixar claro aos aliados na NATO que há linhas vermelhas. Estava também a mostrar uma vez mais a sua admiração pelo Império Otomano, que noutra ocasião disse ter na República da Turquia a sua continuação moderna.
Esta recuperação do legado imperial, assim como dos valores islâmicos, é uma rutura com a tradição ataturkista. Mustafa Kemal, o general que conseguiu travar a cobiça das potências sobre Istambul e a Anatólia, fundou em 1923 uma Turquia que imaginou republicana e laica. E a verdade é que até 2002, data da primeira vitória dos islamo-conservadores do AKP, essa parecia ser a matriz do país euro-asiático, só à espera de ser reforçada com a adesão à UE.
Erdogan, que há menos de um mês se fez reeleger presidente, não tem, porém, ganho eleições só à custa de uma estratégia neo-otomana, na política interna como na externa. No seu currículo há medidas como o reconhecimento de direitos linguísticos à minoria curda, a abolição da pena de morte ou o confinamento dos generais aos quartéis que mereceram o aplauso mesmo de quem não partilha da ideologia do AKP. Mas o segredo do sucesso de Erdogan, que as últimas eleições provaram ser mais popular do que o partido, é o desempenho da economia turca nesta última década e meia.
Hoje a Turquia surge como a 17.ª economia quando em 2002 era a 21.ª; em termos de rendimento médio por habitante progrediu da posição 76 para a 53; e se olharmos para o Índice de Desenvolvimento da ONU a evolução é de 85 para 71. Percebe-se os habituais mais de 40% do AKP e os mais de 50% de Erdogan nas presidenciais de 24 de junho. E também por que a oposição continua mergulhada em lutas internas.
É pois da economia que pode vir a maior ameaça ao fenómeno Erdogan, capaz até agora de resistir à ameaça do PKK e do Estado Islâmico, a um golpe patrocinado por Fethullah Gülen, a uma intervenção militar na Síria, a um virar de costas de boa parte dos europeus e a um choque com os Estados Unidos por razões várias, desde a nova parceria de Ancara com Moscovo até à recusa de Washington de extraditar Gülen.
Fala-se de inflação, de desvalorização da lira, de aposta excessiva no consumo interno e no investimento estatal. E percebe-se que no contexto regional em que a Turquia se insere há sempre desafios a resolver, agora a pressão americana para as empresas turcas respeitarem as sanções ao Irão.
Acusado de desrespeitar a imprensa e de abusar dos seus poderes para purgas, Erdogan acusa por seu lado o Ocidente de falta de solidariedade em momentos decisivos, como o golpe de 2016. Há quem lhe chame de novo sultão, mas a sua ambição é celebrar em 2023 o centenário da República da Turquia como país unido, próspero e respeitado. Talvez não haja contradição: as duas amigas que vi há dias abraçadas pelas ruas de Üsküdar, bairro de Istambul, uma de cabelos ao vento e a outra de lenço, mostram como é complexo este país tão entre o Ocidente e o Oriente, onde custa menos de um euro ir de barco da Europa à Ásia.