A extraordinária "história" de Dominique Strauss-Kahn neste último mês e meio veio, mais uma vez, lembrar como a tragédia é uma experiência de que se podem tirar lições únicas, tanto sobre a fragilidade da vida e as contingências que a atravessam, como sobre os paradoxos do destino e os desígnios que o selam. Mas ela permite tirar algumas conclusões mais, que o nosso tempo acrescenta à imemorial sabedoria da tragédia.
Em primeiro lugar sobre o tempo, e o modo como ele tem vindo a desdobrar-se em temporalidades muito diversas, que conflituam entre si. Basta pensar na justiça ou na finança, na política ou nos media, para imediatamente nos apercebermos de que cada uma destas actividades vive dentro de uma lógica temporal específica, e que as consequências deste facto são um dos aspectos mais marcantes da actualidade.
Uma vez que o tempo está hoje completamente sujeito à velocidade e à cultura do curto-termismo, o que se impõe acaba sempre por ser o que dispõe de um dispositivo temporal mais rápido. Os media ganham sempre à justiça, como a finança vence sempre a política, porque nem a justiça pode dispensar a investigação, a prudência e a avaliação, nem a política pode dispensar os calendários eleitorais e os procedimentos formais com que a democracia se identifica.
A lentidão, que na verdade foi sempre uma condição sine qua non da civilização, tem vindo a ser cada vez mais substituída por uma apologia estonteada da velocidade, que se tornou, como escreveu M.Kundera, na forma contemporânea do êxtase, apesar de muitas vezes mais não ser do que um atalho para o regresso à selva. Institui-se deste modo uma tirania do imediato que, como vimos no caso Strauss-Kahn, se acompanha de um incentivo à excitação cada vez mais alucinada que atravessa todo o sistema de comunicação - imprensa, televisões, blogosfera, redes sociais, etc. -, transformando cada cidadão num espectador histérico, preso a narrativas que o hipnotizam e manipulam sem fim nem contraponto.
Tudo isto é, como facilmente se compreende, fatal para a política. Sobretudo desde que os próprios políticos se deixaram - nuns casos por estupidez, noutros por narcisismo, mas sempre por negligência - transformar nos mais do que convenientes "bodes expiatórios" de um mundo que não conseguem dominar, nem sequer, muitas vezes, compreender. O que só conduz, por paradoxal que pareça, a que na vida política se exijam pessoas cada vez mais perfeitas, para exercerem funções cada vez mais irrelevantes!
Uma segunda conclusão a tirar é sobre a diferença de culturas e de valores que enquadram os sistemas judiciais francês (e, em geral, europeu) e americano. Essas diferenças concentram-se num entendimento muito distinto do que é a igualdade. Na cultura francesa, a igualdade é indissociável de um respeito que impõe a todos um tratamento tão digno quanto possível. A revolução francesa acabou com o privilégio do respeito, de que só uma pequena minoria usufruía até ao século XVIII. A revolução americana, pelo contrário, em nome da igualdade aboliu o direito ao respeito, como se vê tanto no direito penal como no enquadramento da protecção da vida privada. O perp walk, esse ritual de exibição e de humilhação púbica de alguém algemado quando apenas é suspeito, é uma boa ilustração destas diferenças.
Uma terceira conclusão tem a ver com a justiça e com as suas relações com os media. E aqui é preciso enfatizar que, se o procurador de Nova York, Cyrus Vance, não tinha dados seguros para o brutal tratamento que infligiu a D. Strauss- -Kahn, nenhuma "aura" de celebridade ou de poder justificam a enormidade do que ele fez, e fez fazer. Tratando-se do procurador mais poderoso dos Estados Unidos, que dispõe de uma equipa de mais de 500 elementos, é incompreensível que tenha sido preciso um mês e meio para descobrir as aldrabices da suposta vítima.
A justiça americana agiu como se o estatuto de celebridade, ou o reconhecimento de poder, de D.Strauss-Kahn, fossem mais importantes do que a presunção de inocência. E nada, nem o facto de ter sido a própria acusação a revelar agora as suas fragilidades, atenua um passo tão monstruoso.
Isto acontece não só porque a matriz americana da espectacularidade contamina tudo o que toca (justiça, política, cultura, etc.), mas também porque os media têm vindo a colaborar na sub-reptícia instituição de alguns dogmas, como o da quase impossibilidade de se ser simultaneamente político e honesto, ou célebre e inocente. E isto só se alterará se os media deixarem de se comportar como se pudessem irresponsavelmente revelar tudo o que vêm ou ouvem, sem que essa revelação seja precedida e acompanhada de todos os quesitos que a sua validação deve sempre exigir.
Dominique Strauss-Kahn é uma notável personalidade do nosso tempo. Economista, político, autor de trabalhos de referência entre os quais se destaca o livro La Flamme et la Cendre (um dos mais lúcidos diagnósticos sobre os desafios que o socialismo enfrenta na era da globalização), ele é um daqueles homens que toda a gente passa o tempo a dizer que "fazem falta".
Homem de visão, o seu trabalho à frente do FMI é unanimemente saudado pelas reformas que conseguiu introduzir (as únicas de relevo, nos últimos tempos, numa organização internacional) e pelo papel decisivo que desempenhou na crise grega e nos dramas do euro desde fins de 2009. Era o mais forte candidato às eleições presidenciais francesas de 2012.
Tudo isto foi subitamente interrompido por uma justiça que o exibiu algemado e, depois, enviou para uma prisão de alta segurança, criando um acontecimento que foi o mais noticiado e comentado no mundo, desde o 11 de Setembro. Cedendo assim, sem quaisquer indícios sérios, à onda de vitimização que, sob os mais diversos pretextos, atravessa as tão frustradas sociedades actuais, bem como ao crescente ressentimento populista contra todas as formas de poder, de conhecimento ou de celebridade que a acompanham, numa voragem de espectacularidade que despreza todos os valores e ignora a mais elementar prudência. Com as consequências que se sabe, mas nem sempre se vêem...