Dramalhões em desenhos animados

Acabam com um final alegre no qual imaginamos que todos viveram muito felizes para sempre, mas há dramas profundos nos clássicos de animação da Disney. <i>O Rei Leão</i>, que regressou agora ao cinema, enfrenta a ideia da morte.
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Os filmes da Disney transmitem, com as suas histórias, um espírito de absoluta alegria que marca a imaginação e as memórias de infância de todos os seus espectadores - basta lembrar os múltiplos finais em que as personagens «viveram felizes para sempre», como nos contos de fadas. Mas também como nos contos de fadas muito acontece até esses finais felizes. E muitas lágrimas correram dos nossos olhos ao observarmos quando a mãe de Bambi morre, perante a tristeza da separação de Bernardo e Bianca, a crueldade a que os pequenos Dálmatas são sujeitos. Diz-se, na teoria da literatura, que esse sofrimento conduz à catarse. Pois então a Disney é uma especialista em catarses de tenra infância. E, nesta linha, o filme O Rei Leão (que voltou a ter estreia nas salas portuguesas há poucos dias, desta vez em versão 3D) aproxima-se também do estatuto de rei dos dramas.

The Lion King, no original, que estreou pela primeira vez há 17 anos, é hoje reconhecido como o filme de animação mais rendível de sempre dos Walt Disney Animated Studios (excluindo, portanto, as produções da Pixar como Toy Story 3 e À Procura de Nemo, títulos que o ultrapassam em termos de valores de bilheteiras), tendo somado aproximadamente 602 milhões e meio de euros. Este valor não encontra justificação apenas na grande quantidade de crianças que foram ver o filme. Então o que o explica?

No caso da 32.ª longa-metragem de animação da Disney, o herói é Simba, um jovem leão que, tendo a consciência de que vai suceder ao pai Mufasa como rei, ambiciona crescer mais depressa do que deve. A história sofre uma reviravolta, contudo, quando Simba testemunha a morte do pai, é acusado de assassínio pelo tio Scar e foge do reino. Depois de ter crescido com o suricata Timon e o javali Pumba num universo onde o lema seguido era hakuna matata (que significa, literalmente, «não há problemas»), Simba reencontra a leoa amiga de infância Nala, por quem se apaixona, e regressa às suas origens, confrontando o tio, que se apoderara do trono, com a sua mentira.

A fórmula dramática cita diretamente a trama e as personagens de Hamlet, célebre tragédia escrita por William Shakespeare no final do século xvi (Simba será Hamlet, Mufasa o pai, Scar o tio Cláudio). E também busca raízes nas jornadas de personagens bíblicas como Moisés. No entanto, a originalidade de O Rei Leão reside no tema principal do filme - a ideia tão espiritual quanto científica de «círculo da vida». Não é à toa que o prólogo do filme é preenchido com a música Circle of Life. E numa das cenas mais comoventes, Mufasa ensina o filho que, apesar de matarem os antílopes para os comerem, também eles morrerão, se tornarão erva e servirão de comida para os outros animais. Pela primeira vez na história dos filmes do estúdio de animação, os espectadores da Disney lidam, expressa e diretamente, com a morte.

Ora se a morte continua a ser um dos temas mais tabus da história do cinema na generalidade (tendo que ver, em parte, pela dificuldade em o tratar), então no caso dos filmes de animação, dirigidos ao público infantil, o caso é ainda mais bicudo. Como falar de morte às crianças? Em O Rei Leão, Irene Mecchi, Jonathan Roberts e Linda Woolverton, os argumentistas, que escreveram este drama, tiveram a consciência de que era um filme para ser visto e entendido por crianças. Mas, ainda assim, decidiram escrever uma história sobre temas tão profundos como o círculo da vida ou a perda de um pai, algo que desperta para um dos maiores medos, não só das crianças como também dos adultos.

Como escreveram Meredith Cox, Erin Garrett e James A. Graham no trabalho A morte nos filmes da Disney: Implicações para o entendimento das crianças sobre a morte, ao contrário de obras como Bambi, onde, apesar de a morte ser testemunhada, não é seguida por um sentimento de luto, em O Rei Leão, para além da demonstração do assassínio de Mufasa, «a morte é testemunhada e o jovem protagonista demonstra uma série de emoções típicas do luto, desde a culpa e a raiva à profunda tristeza». Dessa maneira, os méritos do filme residem no facto de oferecer «uma visão realista do luto» e, por isso, de servir potencialmente como «uma ferramenta de ensino para discutir o tema com as crianças».

A morte de alguém próximo não é, no entanto, uma estreia na Disney, com O Rei Leão. O próprio filme relembra o já referido Bambi, de 1942, em que a mãe do protagonista é assassinada por caçadores (ainda que a evidência seja apenas deduzida). Afastada da morte mas explorando a perda de familiares próximos um dos primeiros e mais manifestos exemplos é Pinóquio, segunda longa-metragem da Walt Disney (de 1940), em que o pai procura o filho fugitivo e, depois, vice-versa, ou Dumbo (do ano seguinte), em que o pequeno elefante é retirado do conforto da mãe. 101 Dálmatas também oferece um bom exemplo da ligação dramática entre pais e filhos [ver caixas].

No caso de O Rei Leão, o sucesso comercial deve-se, primeiro, pelo facto de haver um equilíbrio muito bem conseguido entre os momentos trágicos - a cena mais impressionante, em termos gráficos e dramáticos, é, sem dúvida, quando Simba vê o pai a morrer - e os de comédia, com a inclusão de Timon e Pumba, de momentos musicais e de aventura aliviam o tom pesado da narrativa. E também se deve pelo facto de tratar a morte, a família e as etapas naturais da maturidade com um sentido pedagógico e um respeito simbólico e unificador verdadeiramente singulares.

Com reposição em sala em época de puro espírito natalício, O Rei Leão acaba por nos relembrar, através das teias do seu drama, que as relações familiares, pela sua ilimitável força, são imunes a tudo, mesmo até à marcante passagem do tempo.

Bambi

Apesar de ser preenchido por uma aura de inocência, pureza e sentido de descoberta, Bambi deu-nos a ouvir um dos momentos mais impressionantes da história da Disney. O som do tiro de uma espingarda, enquanto Bambi corre à frente da mãe. A dedução, mais tarde confirmada, faz-se de imediato: um caçador matou-a. Ainda que tenha sido pensada uma cena em que o público veria a mãe a ser alvejada, a equipa de argumentistas decidiu cortá-la do resultado final e ilidi-la, por considerar que poderia ser demasiado chocante.

Pinóquio

A história do boneco de madeira não é original da Disney. O escritor e jornalista Carlo Collodi escrevia, no século XIX, As Aventuras de Pinóquio, centrado nas desventuras de um rapaz traquinas que tem um único desejo: ser humano. A adaptação para cinema realizada pelos estúdios da Disney dá maior ênfase à relação do «pai» Geppetto com o seu «filho» Pinóquio, exibindo a busca de um pelo outro (em diferentes circunstâncias até se encontrarem dentro de uma baleia) e mostrando como o amor familiar pode ultrapassar os simples laços «de sangue».

101 Dálmatas

O desaparecimento também é tido como tema central numa das grandes obras de animação da Disney, 101 Dálmatas. Neste filme, os 15 filhotes do casal Pongo e Prenda são raptados por dois servos da vilã Cruella de Vil, que deseja fazer deles (e dos restantes dálmatas) um casaco de peles. Assombrados pelo desaparecimento e pelo perigo em se encontram, os pais vão procurá-los e protegê-los-ão até o fim da narrativa, que conclui com o seu amor pelos filhos e o dos donos pelos seus cães.

Dumbo

Em 1941, Walt Disney trouxe-nos uma das cenas mais enternecedoras da história da animação: agrilhoada dentro de uma jaula com uma minúscula janela, a mãe do pequeno elefante Dumbo acaricia-o e embala-o com a sua tromba, cantando para o filho que chora. Neste filme parece não ser preciso utilizar a morte como dispositivo para explorar a separação de uma mãe do seu filho. Precisamente por causa da crueldade humana, que ridiculariza os dois elefantes, uma das proezas deste filme é mostrar-nos as possibilidades libertadoras do amor.

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