A conversa é no Clube de Jornalistas, na Rua das Trinas, bem perto da residência oficial do embaixador americano, que fica no chique bairro lisboeta da Lapa. "Achei ser o local certo para um almoço com um jornalista. Além disso, sou cliente habitual", explica Robert A. Sherman. Nem de propósito, a empregada aparece com o couvert e diz em inglês: "Trouxe porque já sei que o senhor embaixador gosta." Experimento a pasta alaranjada, que ambos barramos sobre fatias de pão. Descubro que é creme de cenoura com chouriço, daí o sabor meio apimentado..Já voltaremos a conversar sobre as incursões do embaixador na gastronomia portuguesa, que considera "sensacional", mas antes surge um primeiro tema político: a morte há dias de um velhíssimo inimigo da América. "Ao longo da minha vida, Fidel Castro teve uma enorme influência na política e nas políticas dos Estados Unidos. Uma das minhas primeiras memórias de um evento internacional foi a crise dos mísseis de Cuba. Era apenas uma criança, mas lembro-me de ver a televisão e não perceber o que estava a acontecer. Mas via o ar de preocupação nos rostos dos meus pais. E então percebi que estava a acontecer uma coisa muito grave", comenta, para depois acrescentar: "Olho para a morte de Castro como o fim de uma era e talvez como o início de uma era de maior abertura, o que será bom para o povo cubano e para o povo americano.".Ora, com Fidel doente, o seu irmão Raúl Castro, novo líder, aceitou a mão estendida de Barack Obama e reatou as relações diplomáticas meio século depois. Tendo em conta que foi Obama, o presidente que visitou Havana, o mesmo presidente que o nomeou embaixador em Lisboa, pergunto a Sherman se não receia que Donald Trump, recém-vencedor das eleições, deite tudo a perder. Uma ligeira pausa e logo chega a resposta, diplomática, como não podia deixar de ser: "Vamos ver o que vai acontecer. Sempre que há um novo presidente temos de esperar para ver o que vai acontecer. Já lidei com isto suficientemente de perto para saber que quando um presidente toma posse, a visão de trás da secretária na Sala Oval é muito diferente daquela que se tem durante a campanha. Por isso é um erro julgar o que um presidente vai fazer pela experiência antes de tomar posse. É inevitável que as nossas relações com Cuba fiquem melhores. Se vai ser mais tarde ou mais cedo, depende de vários fatores, mas a morte de Castro é um acontecimento importante no caminho para a normalização das relações.".Pausa na conversa e fazemos os pedidos. Salmão com legumes para o embaixador, polvo assado para mim (o embaixador sentiu-se também tentado, mas tinha comido polvo dois dias antes, aqui também no Clube de Jornalistas). Combinamos beber água, que Sherman passou a tomar ao almoço depois de nas primeiras semanas em Portugal descobrir que lhe desafiavam sempre "a provar um branco, depois um tinto, ainda um porto e por aí fora". Agora só ao jantar bebe vinho, sendo certo que prefere "nos tintos os do Douro e nos brancos os alentejanos". Não resisto a perguntar se aprecia vinho Madeira, o tal tão adorado pelos Pais Fundadores dos Estados Unidos que serviu para brindar em 1776 a Declaração de Independência. O embaixador sorri. É grande apreciador, diz. Já foi várias vezes à Madeira e conta que um dia até ofereceu ao secretário da Energia, o lusodescendente Ernest Moniz, uma garrafa quando de uma passagem deste por Lisboa. "E de repente descubro que está a correr mundo a notícia de que Moniz e o secretário [de Estado John] Kerry brindaram com esse madeira a assinatura do acordo com o Irão sobre o nuclear", relembra, a rir-se..Bostoniano, com 63 anos, Sherman foi um dos advogados das vítimas de pedofilia num escândalo que envolveu a Igreja Católica e que ganhou fama com o filme Spotlight. Combinamos passar à frente o tema, pois é daqueles a que o embaixador está sempre a responder e que Hollywood explicou bastante bem. E já que falamos da sua vida no Massachusetts, estado onde há uma grande comunidade de lusodescendentes, pergunto sobre se costumava cruzar-se muito com portugueses. Evidentemente que sim, pois até um dos repórteres do Boston Globe envolvidos na investigação à pedofilia era português. "Cresci numa cidade chamada Brockton. Muitos dos meus colegas de escola eram portugueses, de famílias dos Açores. A minha família tinha imigrado da Rússia, mais especificamente da Ucrânia. E percebi que partilhava valores com os meus amigos de ascendência portuguesa: a devoção à família, o empenho no trabalho duro, o respeito pelos outros, a tolerância. Criámos uma ligação. E ao longo da vida trouxe comigo a ideia de que estes são os valores fortes que os portugueses têm. Foi uma das razões para que quando o presidente Obama me perguntou se tinha preferência quanto ao país onde queria servir como embaixador, Portugal foi a minha escolha.".Antes de os pratos principais chegarem, é oferecido um amuse--bouche. Um copinho com mousse de milho aromatizada com chouriço. O diplomata come com gosto à colherada. Comenta que tudo o que tem que ver com milho é muito popular nos Estados Unidos, mas que esta mistura é novidade para ele. Como sei que os pais eram refugiados religiosos, judeus da Europa de Leste, fico um pouco admirado por gostar de chouriço. Explica-me que nos Estados Unidos "só os judeus mais ortodoxos respeitam a proibição de comer porco". E nota que apesar de gostar muito de peixe, " bom cá como no Massachusetts", o seu prato favorito em Portugal é o porco preto..É tradição o embaixador americano em Portugal não ser um diplomata de carreira, mas sim uma figura próxima do presidente em funções. Assim acontece também com Sherman, que é amigo do casal Obama e foi um bem-sucedido angariador de fundos para as campanhas. Mas a vinda para Portugal, em 2014, teve um episódio curioso a antecipá-la, que o diplomata conta entre risos: "Uma coisa que a minha mulher e eu sempre quisemos fazer foi ir a Portugal. E para o nosso aniversário ela planeou uma viagem-surpresa. Não me disse onde íamos. Só as datas. Quando a data se aproximou recebi a chamada da Casa Branca e o presidente Obama pediu-me para ser embaixador em Portugal. Quando lhe disse isto, ela ficou ainda mais entusiasmada e finalmente disse-me que a viagem que tinha planeado era a Lisboa. E eu disse que ela é que não ia acreditar mas que naquele momento não nos iam deixar ir. Porque quando se é o nomeado é preciso passar por um processo, pela aprovação do Senado, e até isso acontecer, não pode ir averiguar a área para onde vai. A Casa Branca não nos deixa ir. Por isso a primeira visita foi adiada até finalmente chegar como embaixador em abril de 2014.".Com dois filhos adultos, Sherman é casado com Kim Sawyer, advogada e empresária, que passa a vida a viajar entre Portugal e os Estados Unidos mas que tem tido papel ativo na embaixada, sobretudo através do projeto Connect to Success. Este visa promover o empreendedorismo entre as portuguesas. "É uma iniciativa que envolveu já 700 mulheres", sublinha..De grande impacto foi a ideia de fazer vídeos a apoiar a seleção portuguesa no Euro em França. O salmão, entretanto, chega e está ótimo, o polvo não lhe fica atrás. Sherman explica então como tudo começou: "A ideia partiu do staff da embaixada e não de mim. Trabalho há 35 anos no setor privado e no público e sem fins lucrativos e nunca tive um staff assim. Português e americano. Como se tratava do Europeu de futebol e, por isso, os Estados Unidos não participavam, estávamos livres de torcer pelos países onde estávamos destacados. E a ideia era fazer apostas engraçadas com os outros embaixadores do grupo: Islândia, Hungria e Áustria. O primeiro vídeo que fiz era para ser divertido, usar um lenço de Portugal, como combatente ninja. E embrulhar-me na bandeira portuguesa e falar no facto de ao contrário da Islândia e dos outros países do grupo, nós tínhamos algo especial: Cristiano Ronaldo. O vídeo tornou-se viral. E à medida que íamos fazendo outros vídeos houve uma mensagem que tentámos passar. Não se trata de um jogador, uma pessoa, nem de sorte. A mensagem era sobre jogar como uma equipa. E quando se joga como uma equipa - e isso aplica-se não só ao desporto mas também a outros aspetos da vida - podemos conseguir grandes coisas. Foi o que fizemos com os vídeos", explica. Continuando: "Descobri mais tarde que a equipa soube dos vídeos, que os usou como inspiração, o que me deixa honrado. Acabei por ir ver a final, a convite deles, em Paris. Deram-me a camisola com o meu nome nas costas e assinada por eles. Em troca, quando fizemos uma campanha contra a violência doméstica aqui em Portugal, pedimos à equipa para participar." E assim, há dias, a embaixada publicou um vídeo com quatro campeões europeus: José Fonte, Nani, Rui Patrício e Pepe. "Todos nos ajudaram a passar a mensagem de que a violência domestica não é aceitável", acrescenta Sherman..Não foram só os jogadores que ficaram agradecidos. O embaixador, que percorre o país de Harley-Davidson, é hoje identificado na rua. "Na Golegã perguntaram-me se era o embaixador dos Estados Unidos e pediram-me para assinar um boné da seleção", conta, dizendo "seleção" em português..Outra palavra que, apesar de a conversa ter sido em inglês, o embaixador disse à portuguesa foi "Sebastião". Aliás, D. Sebastião. "Mal cheguei a Portugal, falei sobre o facto de acontecerem coisas boas aqui e de eu as poder ver. O vinho, o calçado, a indústria têxtil, a nanotecnologia. No primeiro grande discurso que dei, disse que o maior obstáculo aqui não era a crise económica, mas a crise de confiança do povo português. A sensação de que não são suficientemente bons para estarem entre os líderes da Europa. Disse que isso não era verdade e que isso se refletia no sebastianismo. Na ideia de que temos de esperar que D. Sebastião regresse para Portugal voltar a ser grande. E a minha mensagem é que têm de parar de esperar, porque D. Sebastião está aqui. Está no espírito do povo português, e a única coisa que é preciso é perceber isso para que grandes coisas aconteçam. Isso refletiu-se na vitória da seleção portuguesa pela primeira vez num Europeu. No facto de quando a ONU precisou de um líder em tempos conturbados escolheu António Guterres, um português, para a liderar. No facto de termos tido aqui a Web Summit, que se mudou e Dublin para Lisboa devido ao reconhecimento de tudo o que está acontecer aqui em termos de inovação . Reflete-se no facto de os vinhos portugueses estarem entre os melhores, de a comida estar a ser reconhecida, de a beleza do país estar a ser destacada por revistas de turismo. Tal como Portugal descobriu o mundo há séculos, o mundo está a descobrir Portugal." E com esta declaração de fé em Portugal, onde confessa que ganhou "uns quilinhos", chegamos ao momento do café, saltando a sobremesa..Voltamos a falar sobre a América hoje. Sobre a democrata Hillary Clinton ter tido mais votos e mesmo assim ter perdido para o republicano Trump diz não ser um problema, pois "o sistema justifica-se porque é o sistema em que o nosso país foi fundado. Talvez se estivéssemos a criar o país agora escolheríamos um sistema diferente. Mas foi designado para dar um equilíbrio entre os estados populosos e os rurais. Para que todos tivessem impacto na escolha do presidente. Mas recordo que mesmo na Europa não é garantido que a pessoa que teve mais votos seja a que governa. Podemos ver isso em Portugal, em resultado das últimas eleições". À cabeça vem-me as dúvidas que em tempos o embaixador expressou sobre o governo contar com o apoio de partidos críticos da NATO, mas insisto na questão da legitimidade da vitória de Trump e a resposta é conclusiva: "Ambos os lados sabem como funciona. Não se trata de quem tem mais votos populares, mas sim de quem consegue os 270 votos que representam a maioria no colégio eleitoral.".Recusa-se, no entanto, a admitir que Hillary esteja condenada a ser nota de rodapé na história americana. "Infelizmente foi incapaz de chegar ao cargo mais alto na nação. Mas teve uma influência forte sobre as políticas americanas através dos outros papéis que desempenhou", nota, relembrando que Hillary foi primeira-dama, também senadora e chefe da Diplomacia..Ficou a América completamente partida ao meio com estas presidenciais de 8 de novembro?, lanço como pergunta final. "A mensagem deixada pelos eleitores foi que há pessoas, sobretudo na classe média trabalhadora, para as quais o sonho americano está cada vez mais longe. Espero que a mensagem que os nossos líderes políticos tenham recebido nestas eleições é que temos de fazer mais nas nossas instituições por todos os americanos. Não só os ricos, não só os pobres, todos. Inclusive a classe média." Será Trump capaz de unir a América, depois de uma campanha tão agressiva? Sherman não hesita: "Dou o benefício da dúvida a Trump. Agora é o meu presidente." E despedimo-nos, naquele restaurante que, fico a saber, foi o primeiro que o embaixador conheceu em Portugal, pois foi lá levado a jantar no dia em que aterrou em Lisboa, 5 de abril de 2014..Clube de Jornalistas.› Entradas.› Água.› Polvo assado.› Salmão com legumes.› Cafés.Total: 49 euros